sexta-feira, 6 de julho de 2012

Retorno


...extenuado, deprimido, afoito, ansioso, mas lá estava ele: chegou a uma grande bifurcação em sua vida. Não imaginava que se veria em tal situação, afinal sempre se comportou como quem viveria a sua vida tranquila, com os percalços normais de uma vida regular de uma pessoa normal. Mas conheceu outros caminhos, vários caminhos. Os percalços surgiram e ele resolveu experimentar diferentes vidas, diversões, depressões, decepções, encantamentos. Tornara-se mais tolerante e isso o ajudou a se relacionar. Ao menos era o que pensava.

Mas a estrada havia sido percorrida agora, não havia mais como voltar atrás, e o caminho à sua frente se abrira em duas direções. Ambas se mostravam belíssimas no horizonte, mas a frente das montanhas atingidas pelo sol não mostra os perigos de seus interiores, e ele conhecia muito melhor uma dessas vidas do que a outra. O caminho já estava escolhido, mas somente isso não bastava; ele precisa finalmente enfrentar o demônio que surge à sua frente. Tinha plena consciência que ele apareceria, mas sua figura é muito mais arrebatadora do que previa e exercia sobre ele um peso que ele já não mais podia suportar.

Evidentemente, pensou em esquecer tudo aquilo, voltar e nunca mais olhar para tais passagens; preferia não enfrentar aquele enorme demônio a desfrutar de qualquer uma daquelas belezas. Deu meia-volta e caminhou por alguns metros, e lá estava o demônio à sua frente. Era óbvio, porque ele iria embora tão facilmente? Ainda mais para ele, que não conseguia esquecer nada importante em sua vida. 

- Aonde vai, meu jovem? – perguntou o demônio.

- Embora, e tentar esquecer tudo isso.

- Venho te acompanhando ao longo dessa sua jornada; não somente essa, mas todas. Não é mais hora de esquecer; você está sempre voltando pra recomeçar. A estrada agora só tem como continuar, eu não permito mais que volte.

O demônio assumira um tom paternal, que tanto lhe faltou durante a vida; uma ou outra lição era tudo o que tinha aprendido de seu próprio pai. Criou-se em meio aos gatos e pela mãe, a mulher mais carinhosa e adorável que conheceu, e tios. Percebia agora que isso o tornara frouxo, apesar de ter convicções. Ele olhou fixo nos olhos desse pai que aparecia à sua frente e percebeu que devia voltar seus olhos para a bifurcação. Mas ela desapareceu! Agora havia um só caminho, o da montanha que lhe era familiar, que ama, a montanha em que se enxergava pelo resto da vida.

- Mas...de onde surgiram essa neblina, essas pedras? – perguntou ao pai.

- Você as criou, a partir do momento que resolveu explodir coisas; aí estão são os resquícios dessas suas explosões.

Silêncio. Aceitação. Raiva de si mesmo pelos seus atos. Resignação. Arrependimento. Choro desesperado. Tudo num só instante, tudo fruto de sua própria culpa.

- Posso voltar para ela? – perguntou enquanto olhava fixamente para o topo, que era ainda mais belo. Uma mão fraterna, mas pesada, pousou em seus ombros e o demônio entonou firmemente a voz às suas costas:

- Não sei se vai conseguir, mas você D-E-V-E tentar percorrer este caminho. Não espere que será fácil, porque não será. Tenho a impressão de que aquela montanha ainda irá acolhê-lo, mas você precisa ser o homem que não foi até hoje. Ou pelo menos o homem que eu conheci um dia. Você terá de encontrá-lo neste caminho. Há pessoas que poderão ajudá-lo durante o percurso, mas terá de querer.

Ele baixou a cabeça, viu sob seus pés que a estrada não mais era composta de um asfalto rachado, esburacado, mas de vidro: a cada passo, um corte em seu corpo. E justo em suas principais falhas. Era necessário; nunca mais esquecerá das dores que irá sofrer pelo que há de falho em seu corpo, nunca mais irá permitir que elas voltem. Ergueu a cabeça, uma brisa atinge seu rosto enquanto ele olha fixamente para a montanha.

- Sim, eu quero!

Princípios, prioridades, primeiros passos, aprimorar-se, primavera. O inverno caminhava e era hora de iniciar a jornada. E ele partiu...

sábado, 7 de abril de 2012

Orfeu e Eurídice


- Ainda bem que você pode olhar à vontade para trás, pelo menos enquanto aqui estamos, no mundo dos mortos. Aqui, onde o tempo não passa; onde a vida se repete todos os dias; onde a música é um interminável Lá, Fá, Sol; onde a lua está sempre cheia e no topo do céu; onde chove todos os dias durante 15 minutos às 7 horas da manhã, horário em que todos devem acordar; onde não se tem nada sem enfrentar fila; onde não se vai a lugar algum sem parar no trânsito; onde se ama somente sem conhecer; onde pra ter, basta não querer e, portanto, o inverso também é a norma. Ainda que aqui não haja norma e quando finalmente se acostuma, tudo muda.

- Eu entendo porque quer se manter aqui; está salva nesse interminável ciclo. E ainda lhe garantiram a eternidade. Mas venha, suba comigo; o terreno é arenoso e traiçoeiro, mas eu segurarei sua mão...sim, infelizmente minha mão é a maior garantia que posso lhe dar. Ela que hoje é forte e determinada, pode ficar fraca e distante um dia, sem motivo aparente, quando um surto de razão atingir o coração ou quando o corpo não mais aguentar segurá-la. É uma existência finita, distante de ciclos. Não fará o que quiser, mas também não lhe dirão tudo o que tiver que fazer. Você decide o que quer, mas ainda assim a decisão não é totalmente sua. Não se lembra de nada disso, minha amada? É melhor, a novidade lhe cairá bem. Ou poderá assustá-la, mas neste caso eu estarei aqui para segurar sua mão, assim como faço agora. Pena não poder te olhar; imagino se essa relutância, estes pés fincados no chão são uma resistência ao meu convite ou se você mesma está me convidando a ficar aqui. Mas eu não ouço sua voz, são só sussurros distantes, em tom grave que sequer sei se são seus. Uma gravidade que não significa doença, mas a falta da essência. Imagino se seus olhos estão a brilhar agora. De todo modo, gostaria de voltar a vê-los do modo como resplandeciam a luz solar em um tom amarelado; é o próprio sol na Terra.

- Vê adiante a luz? É ali que devemos chegar por ora. Depois disso, o mundo estará aos nossos pés. Vamos, não resista agora; não desista de nós agora.

Neste momento, Orfeu contrai seus olhos que recebem a primeira claridade dos raios solares depois de noites de incessante música de convencimento da sua lira para Hades. Os dedos que chegaram à exaustão e sangramentos profundos tremiam ao puxar a pequena mão do corpo que ele não podia olhar. Mas os dedos encaixavam como antigamente, embora estivessem já calejados pelo tempo.

- Sabe, amada Eurídice, me foi dito que se eu olhá-la agora, antes de chegarmos ao mundo dos vivos, você desaparecerá para sempre. Eu não acredito que o deus do mundo dos mortos seria tão punitivo assim. Se assim o fosse, você sequer estaria segurando minha mão. Mas nossa história demonstra que não raros são os acordos entre os homens e os deuses. É assim que encaro o que me foi dito por Hades; talvez eu não deva ver como um espírito se desprende de seu mundo e volte para o nosso. Mas nenhuma outra alma de lá me interessa além da sua, e por isso respeitarei o pacto. Só mais alguns segundos.

No passo seguinte, o braço de Orfeu é atingido em cheio pelo primeiro raio solar e ele ouve um grito de desespero profundo, rouco e de grande dor. Orfeu sente a mão, até então firme e resistente à sua condução, esmolecer-se em queda abrupta. Ele permanece em silêncio e ouve o barulho de uma corrente quebrando-se. O processo acabara, finalmente? Orfeu volta seus olhos para Eurídice que, deitada, fita-o em desesperança; ele sorri e a toma pelos braços, colocando-a em seu colo. Ao virar-se para sair da caverna na qual adentrara, uma grande força puxa a sua amada. Orfeu visualiza uma grande corrente escura no tornozelo de Eurídice. No mesmo instante, oito tentáculos negros a agarram pelos ombros, pulsos, pescoço, cintura e pernas e puxam-na de volta com a força dos deuses. Orfeu tenta ainda, em vão, resistir contra ela, mas sua luta é suficiente apenas para visualizar a ponta de uma corrente fincada no peito de sua amada. Jamais abandonou a ideia de que aquela corrente quebrara o vínculo afetivo de Eurídice com o mundo dos mortos e que agora sua amada finalmente teria consciência dos tormentos do tártaro. Tampouco esqueceu da intolerância dos deuses e nunca mais voltou a encantar ninguém com sua música.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Roda gigante


Toda vez que vejo esta roda gigante, me lembro da ferrugem de suas grades que me tornou o homem mais feliz do mundo naquela fria noite de inverno de 63. Ou 64, não me lembro; os invernos foram todos gelados no começo daquela década. Mamãe dizia até que nunca tinha ficado tão frio, o que é exatamente a mesma coisa que repito todo ano. Não sei se realmente está ficando mais frio ou se estou mais sensível, tal como minha mãe.

Como eu ansiava pegar a mão de Maria! Jamais tomei qualquer iniciativa a respeito pois o medo de ser grosseiro era ainda maior. Aquela mão parecia tão pequenina e sensível ao olhar que eu tinha medo de machucá-la com o mais leve toque. Por isso eu desejava tanto que ela decidisse encaixar sua mão na minha e recorria aos subterfúgios mais patéticos, a maioria deles sem sucesso. Antes da roda gigante, a última tentativa foi atravessar a rua na parte onde estava mais encharcada, e estendi minha mão para ajudá-la a pular. Ela, sempre muito esperta e difícil, pegou-me pelo antebraço e me arrastou para o lugar onde poderíamos atravessar confortavelmente.

A roda gigante, porém, parecia infalível: eu sempre tive medo de altura, e essa era a oportunidade perfeita para torná-lo maior que meu receio e me fazer pegar em sua mão. Convidei-a na terça para ir ao parque no sábado e me preparei para encarar o medo nos dias restantes, sofrendo, inclusive, de uma insônia crônica causada pela troca de lugar na beliche com meu irmão, que deixou claro que nunca mais devolveria a parte de baixo. Quando se é jovem e impulsivo, aceita-se qualquer coisa sem pensar num futuro que não seja o, no máximo, da próxima semana.

Nada disso importava, contanto que eu fosse capaz de controlar meu medo e não apertar muito forte sua mãozinha. E o dia gélido de sábado convergia ainda mais com meu plano; seria não só uma forma de vencer meu medo, como também de aquecermos nossos corpos um no outro. Só não estava nos meus planos ela surgir de sobretudo de couro e aquela grossa luva de lã branca.

Como qualquer parque que vai às cidadezinhas sazonalmente, o que veio ficou na praça da Igreja onde nos casamos 6 anos depois, quando finalmente me sentia à vontade de expressar meu grande amor e pegar na mão de Maria em público. Eu era, definitivamente, um homem de medos. E muitos eu perdi por ela.

Lá estavam a barraca de maçã do amor, a pescaria, as argolas, a boca do palhaço, o tiro ao pato, o carrossel, o mágico, o algodão-doce, os balões...tudo no caminho da imponente roda gigante. Era o primeiro ano que vinha à nossa cidade e era motivo de grande adoração por todos. Alguns diziam que do topo era possível até ver o mar, desconhecido para a maioria de nós. Mas, como podiam ver o mar de noite? “Ele reflete a luz da lua e conseguimos ver a onda gigante acabar com o reflexo”. Depois soubemos ser uma daquelas fantásticas histórias inventadas por uma criança replicada por adultos desejosos por fantasias do tipo.

A fila era imensa e o ranger de cada engrenagem daquela imensa roda serviu para aumentar o nosso medo a cada volta. 7 voltas que ela deu até chegar a nossa vez, quando o medo se converteu em nervosismo. Não sabia se teria coragem de pôr em prática meu plano, que a cada minuto parecia mais estúpido. Mas lá estávamos e não podíamos simplesmente ir embora de repente. Escolhi apertar com força minhas próprias mãos, caso eu sentisse medo. A roda girou e uma brisa gelada subiu pela minha nuca e por um instante esqueci a presença de Maria. Fechei os olhos. “Veja, que lindo aqui de cima!”, ela me disse e eu não consegui responder, muito menos abrir meus olhos. Senti a roda descer.

“Você está bem, Heitor?”, ela me perguntou, com a mão sobre meus ombros. Esta pergunta me soou distante, pois eu só conseguia ouvir o ranger das engrenagens e me arrepiar por inteiro com a brisa que se intensificava quanto mais a roda subia. “Segure nas barras, você vai se sentir mais seguro”, o que fiz e me fez ficar com as mãos ainda mais geladas; nada bom para alguém tão assustado. Coloquei-as no bolso e me encolhi. Senti a intensificação da brisa por mais 4 vezes e finalmente a enorme engrenagem parou. Lá estávamos nós, em solo firme, prontos para ir embora e eu me despedir para sempre de Maria. A portinhola se abriu, desci primeiro e aguardei.

“Ora, mas veja isso! Minhas luvas estão todas sujas de ferrugem!”, exclamou Maria ao retirar as mãos das barras. Imediatamente as descalçou, guardou na bolsa e se preparou para descer. “Me ajuda?”, ela perguntou e estendeu-me a mão. Olhei em seus olhos e percebi que ela sorria para mim, não pela minha covardia, mas pela pureza na qual eu me representava através de meu medo. Não caçoava de mim, e sim tomava a iniciativa que eu jamais tomaria. 

O plano, afinal, funcionou: eu aquecia minhas mãos nas de Maria. Só faltou ver o mar.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Chuva na janela: um breve relato


Um ônibus cheio em pleno 1º de Janeiro. Sonhos, planos, ansiedade para e pelo ano que se inicia. Celulares com internet, livros, Ipod’s, pessoas para conversar, abraçar - e quem sabe  beijar - ao lado. Vidas que iniciam um novo ciclo (ao menos mentais) retornam para casa, para quem sabe relaxar os corpos, voltar para entes queridos ou, ainda, recomeçar  algo ainda reminiscente, que não se perdeu na mudança do ano mas, ao contrário, latejou em uma mente que parece finalmente entender, com a explosão dos fogos, onde está a real felicidade. Apenas conjecturas.

O que se vê, de fato, é uma moça de blusa vermelha que conta sobre a viagem da semana que vem para o rapaz ao lado, contrastando com outra, sentada dois bancos à frente, que retorna da praia, frustrada pelo pouco sol que lá fez. Um bebê olha, com grande atenção, para o pai mexendo no celular enquanto este lança olhares furtivos para uma mulher de ar intelectual que folheia uma biografia de Machado de Assis e está com fones no ouvido que a dispersam do mundo. Atrás dela, um rapaz que digita no celular por bastante tempo¹. Uma senhora carrega consigo um pote de doces e sorri para a vivacidade dos netinhos que a acompanham. Estes, por sua vez, perguntam sobre o funcionamento do clima, dos ônibus, dos aviões, das bicicletas e dos foguetes; mas, principalmente, querem saber quando poderão comer os brigadeiros da vovó, que responde sempre com “já já, meu amor”. Eles fazem um pouco de manha mas no final compreendem o amor de vó e isso os alegra por ora.

O que interrompe essa teia de olhares que se entrecruzam ou se fecham em pequenos círculos e os direciona para um único ponto? Uma tempestade que começa lá fora, presente desde a aurora da humanidade, sendo o foco principal de quase toda relação e construção humanasNaquele instante, todos se silenciaram e o estrondo das gotas no solo e no teto do ônibus era o único som presente neste início de ano.

-------

¹ Espera-se que ele estivesse anotando tudo o que presenciava para, quem sabe, publicar posteriormente num espaço como este. Seria uma ótima experiência ler este possível relato.

sábado, 31 de dezembro de 2011

Perdoe-me, mas não vou te desejar um feliz ano novo


Possuo um ideal de vida: me importo com pouquíssimas pessoas. Tenho total consciência de que as pessoas vêm e vão ao longo da vida, não só da minha, como da de todos. Os modos de encarar essas passagens é que se distinguem: há os que amam intensamente cada instante e sentem saudade dos tempos já vividos, como se a vida fosse um eterno retorno à juventude e aos tempos áureos. Toda a vida é feita de lembranças de pessoas diferentes que passaram por nossas vidas e este enorme amálgama torna-as quem são.

Eu esqueço. Esqueço tudo o que não foi importante, e também esqueço coisas e pessoas importantes. Desconstruo e destruo marcos e lembranças; apago registros, faço piadas sobre eles; atribuo os momentos a terceiros até esquecer que foram meus. Faço-o de tal forma que se alguém me contar uma história parecida eu a acharia um completo absurdo. Mas eu já o fiz; fiz muita coisa. Foram tantos os meus feitos que desconfio de uma patologia ligada à minha essência: é preciso que eu experimente de tudo pra ter certeza de ser quem eu já sei que sou.

E dessa forma mais um ano se passou. Dias, na verdade; os anos são marcos enormes para a vida, e os dias diluem essa sensação de um grande período de tempo que passou. Fui feliz, mas também me resignei muito por essa felicidade; experimentei algumas sensações inéditas, e algumas delas foram além do esperado. Percebi que meu imaginário por vezes é limitado, e a realidade pode ultrapassá-lo de modo fulminante. E os dias (não os anos, meses, ou semanas) me foram ainda mais elucidativos nestes últimos tempos. Reforçaram certas convicções, refutaram outras, entraram em confronto direto com pré-julgamentos. Mas, sobretudo, ensinaram-me, de forma cabal, a encarar a vida exatamente de acordo com minha essência, ou seja, qual o grupo seleto que eu verdadeiramente me importo.

Os dias nos ensinam quem somos; os marcos são escapismos. Contudo, o amanhã sempre pode, e provavelmente irá, me mostrar o contrário. E esta é minha forma heterodoxa de dizer que espero que os dias deste ano tenham nos ensinado a sermos melhores com nossos semelhantes para os próximos dias dos próximos meses dos próximos anos. 


            Um feliz amanhã para todos nós!

sábado, 24 de dezembro de 2011

Choveu naquela noite de Natal


Seria uma noite chuvosa de sábado qualquer, se não fosse a de Natal e eu não estivesse tão triste. Não porque estava sozinho - mesmo porque as lembranças da comemoração em família não são boas -, e sim porque eu não sentia nada, não tinha motivos sequer para reagir à data.

Há sete anos, quando saí de um apartamento próximo ao centro da megalópole chamada São Paulo para a tranquilidade de uma casa no campo, jamais imaginei que um dia me sentiria tão solitário e perdido no mundo. Já não lembro a última vez em que comemorei a data com alguém, com uma família. Mas pelo menos eu ouvia os urros de felicidade vindo dos andares de cima e de baixo; isso já me era suficiente pelo menos para odiar e criticar o Natal. Por vezes eu sentia inveja também, embora me fatigasse rapidamente nesse tipo de encontro familiar. Isso me atacava de tal forma o subconsciente que, assim como o era em minha família, achava que todas as pessoas do mundo, no fundo, se odiavam e o Natal era uma trégua ignóbil. Tudo se transformava numa imensa falsidade, enquanto eu tentava manter minha integridade com meu claro desconforto.

E agora eu só olhava para o pisca-pisca em minha janela, e a chuva lá fora. Era bonito ver as gotas d’água adquirindo cores enquanto escorriam pelo vidro, enquanto eu, aos poucos, começava a perder minha indiferença em relação à data: a melancolia me atingia em cheio. Me faltava ter alguém para abraçar sinceramente e outras com toda a falsidade que o ser humano já fora capaz de desenvolver ao longo dos tempos; me faltava ofender em pensamento vizinhos que sentiam tamanha felicidade  por algo que eu considerava desprovido de qualquer sentido; me faltava invejar o brilho no olhar de uma criança que ganhava um presente e relembrar dos tempos em que eu fora uma criança que não entendia e se entristecia porque todos se abraçavam em determinada hora e se ofendiam poucos minutos depois. Me faltava sentir!

Recentemente meu cachorro faleceu, e eu não tinha mais sua cabeça e seu crânio, rígido como pedra, para dar tapinhas enquanto conversava em voz alta comigo mesmo. Ele só sabia bocejar e lamber a palma de minha mão; não aprendera a falar, embora eu acreditasse que isso era só um charme temporário. Neste dia, só uma caneca de chá quente e uma tigela de doce de abóbora. Já estava farto de comida, pois cozinhei como se Sammy ainda estivesse vivo e eu pudesse dá-lo as sobras. Era somente eu e minha pança olhando para a tempestade atrás das luzes coloridas. O som da chuva e a viagem psicodélica das luzes me fariam dormir antes da meia-noite, isso era uma coisa boa.

Mas uma forte luz branca surgiu no meio do círculo de cores, e se apagou. Dirigi-me à janela e vi uma mulher correr até minha porta. Abri a janela que está numa distância segura da porta e perguntei o que ela queria, no que fui prontamente respondido, com uma voz vacilante, porém doce:

- Esse temporal fez transbordar o rio lá embaixo, a ponte irá ser destruída logo com a força da água e eu estou sem sinal de telefone e com pouquíssima gasolina. Me desculpe, o sítio do senhor foi o primeiro que encontrei, mas entendo que queira passar a virada com sua família sem ser perturbado.

Pensei em mandá-la embora para não desestabilizar os planos solitários do meu natal; contudo, deixei o egoísmo da solidão de lado e convidei-a para entrar. Obviamente, ao notar que eu estava sozinho, ela se sentiu absolutamente desconfortável. Para garantia dela, não tranquei a porta e ofereci uma xícara do mesmo chá que estava tomando, e tomei o cuidado de dar o primeiro gole antes de entregar para ela a xícara. Ofereci-lhe um banho quente enquanto me prontifiquei a tirar o carro dela da lama, antes que afundasse por completo. Ela tinha um filhotinho de labrador, que dormia na cestinha no banco do passageiro. Era exatamente da mesma cor do velho Sammy, embora esse filhote não tivesse o rabo quebrado na ponta. “Há tempo para marcas da vida”, pensei. Levei-o para dentro e ofereci um pedaço do peru que assei, bem como ofereci jantar para a mulher, que aceitou com um belo e singelo sorriso, o qual retribuí, finalmente, com sinceridade.

Uma vez que a refeição estava aquecida, levei-a à mesa e servi. Enquanto ela e o filhote comiam, um raio atingiu a região e cortou a eletricidade. Fui atrás de velas e de uma bateria reserva, que utilizava para ligar certos aparelhos em casos de emergência ou onde não houvesse tomada para plugá-los. E a escolha me pareceu óbvia: o pisca-pisca na janela. Assim, ao som dos pingos de chuva, à luz de velas e tomado pelas cores das pequenas lâmpadas, ela jantou. Outro raio a iluminou por completo.

- Mas que azar, não é? -, ela me questionou, sobre a tempestade, com a mesma doçura de voz de outrora.

Pois eu a considerei uma fortuita sorte.

-------

Nota do autor: Desejo a todos, comemorem ou não, um ótimo natal! E ótimos dias "quaisquer" também...

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Das consequências para quem noticia o fim do mundo


I

O relógio marca 16h16. André ajeita seu terno e sua gravata, pigarreia, engole seco. Enxuga o suor frio que escorre na lateral de seu rosto e seus olhar está desconsolado, em direção às pessoas enlouquecidas que correm desesperadas para seus carros e tem em mãos os celulares para dizer, aos prantos, o quanto amam a pessoa do outro lado da linha. Nunca presenciara tantas declarações ao mesmo tempo; pensa que deve fazer o mesmo, assim que terminar seu trabalho. Entregam-lhe o microfone e os dedos à sua frente contam regressivamente de quatro até um e a mão dá o sinal. Uma luz vermelha pisca de modo intermitente à sua frente; é hora de dizer.

André hesita. Seu piscar de olhos é acelerado, a boca abre mas não diz nada, seu respirar é profundo e faz com que seus ombros se encolham. A produtora gesticula desesperadamente, esperando que ele leia o que está no papel na mão do repórter. Ele pensa no quão insuportável ela é, não dando-lhe uma trégua nem neste instante, em que a grande notícia da humanidade devia ser repassada. “Não nos prepararam na faculdade para o momento da notícia de nossas vidas”, pensa e sorri, ironicamente. Reúne forças para respirar fundo, pigarreia uma última vez, olha para a câmera e enfim declara:

- Aos cidadãos e cidadãs brasileiras...devo acrescentar a todos os seres humanos que me veem agora...é com profunda lamentação que exercerei minha profissão pela última vez.

 (pausa)

- A informação que será transmitida agora é trágica e aflige a todos nós, e infelizmente é oficial: o mundo, a vida na Terra como a conhecemos, deixará de existir em uma hora.

(histeria ao fundo contrastando com o silêncio momentáneo de André)

- Representantes do governo e a presidenta inforrmaram, direto do Palácio da Alvorada, que há unanimidade sobre o evento na comunidade científica, embora a causa não tenha sido revelada. Segundo nota oficial, “a causa para o fim do planeta e da existência da raça humana não é a questão mais importante do momento. Agora é hora de nos unirmos e despedirmo-nos de nossos entes amados. É hora de rezarmos para garantirmos nossa partida de forma tranquila e ter a certeza de que logo estaremos juntos de nossos familiares que já partiram”. – André volta seus olhos para a câmera e reflete por um momento – Que assim seja.

Abaixa o microfone e vê a produtora enfurecida, exigindo que ele repita a informação. Ele volta os olhos para as lentes.

- Repetindo a informação: a raça humana deixará de existir às 17h15 do dia de hoje. É hora de nos despedirmos. André Blanco Martins, direto de Brasília.

A transmissão é encerrada. André larga o microfone, despede-se do câmera, companheiro de longa data, sequer olha para a produtora e parte para casa, ali em Brasília, onde fixara residência com a família há dois meses. “Sorte”, pensou.  

II

A correria, que antes era restrita às poucas pessoas que já sabiam da notícia, torna-se um fulminante tsunami de pessoas abandonando os prédios. Ele então viu-se no dilema de reportar este acontecimento e ter o maior reconhecimento possível num futuro pós falso alarme, onde os termos “dedicação”, “entrega” e correlatos surgiriam, sejá lá o que signifiquem, mas que também poderia significar a sua mais inútil jornada de trabalho na vida (caso o mundo viesse a acabar mesmo), ou despedir-se adequadamente das pessoas que ama. Ele não sabia se acreditava na informação científica, que tantas vezes já errou em suas previsões; por outro lado, não estava disposto a se arriscar. De qualquer forma, ninguém (nem ele mesmo) o perdoaria por não comparecer à iminente despedida.

Mas o caos nas ruas dificultava sua locomoção e o distraía de sua prioridade: acidentes de trânsito, histeria coletiva, saques a lojas e mercados, incêndios em toda a parte, blecautes. André presenciava o poder de suas palavras. Em meio à multidão enfurecida, um destacado homem, vestindo ainda um terno muito alinhado, aproxima-se de André com ar sóbrio:

- Quero ter uma conversa com o senhor.

- Não posso, tenho que ir encontrar minha família. – respondeu prontamente André, acelerando os passos.

- Não será preciso, você a encontra depois.

O repórter para por um instante para olhar com incredulidade a calma que distinguia aquele homem de todos os outros. Qual o assunto que aquele homem quer tratar? Até então, André temia ter sido reconhecido, mas parecia que aquele homem estava alienado de todo o mundo nos últimos minutos. Sendo assim, do que ele queria falar?

- Por acaso o senhor viu ou ouviu a notícia que acabaram de divulgar?

- Mas é claro! A esta altura, só quem estava inconsciente nos últimos minutos não sabe o que está acontecendo. Eu a ouvi de você mesmo.

- Então o que faz aqui?! Não tem uma família para abraçar, uma esposa para beijar, um desejo para se realizar?

- Obviamente. Apostaria que é assim com todos, mesmo os que estão queimando os carros e saqueando as lojas. A questão é que eu não acredito que o mundo acabará em uma hora, e quero que veja com seus próprios olhos a consequência de sua notícia.

- Veja...seja lá qual for seu nome. Eu só transmiti a notícia, não sou responsável pelo fim do mundo. Me dê licença, preciso me despedir de quem amo.

- Sim, uma notícia amparada no que a ciência disse. Quantas vezes ela já errou? Não sabemos a causa nem quem realizou o estudo. Portanto, como saber se é verdade? O senhor simplesmente divulgou algo que o governo disse, mas que ninguém sabe ao certo. Aliás, é muito estranho o governo soltar uma notícia tão importante tão em cima da hora, não acha? Se for verdade, há quanto tempo esse evento está sendo estudado? Uma hora antes dele ocorrer é que se chegou ao consenso? Não é muito conveniente, já que não dá tempo para confirmar a notícia?

- Desculpe, mas já lidei com muitos paranóicos como o senhor em toda a minha vida. Dei-lhe alguma atenção pela forma como está vestido, diferente do tipo comum que adora teorias da conspiração.

- Não é hora para julgamentos, caro André. Peço-lhe cinco minutos para entender o real poder de suas palavras. Olhe para o céu: vê algum fim iminente?

Se no solo os humanos transformaram o lugar num inferno, realmente aquele homem tinha razão: o céu estava azul e tranquilo, com poucas nuvens – uma delas com o formato da sillhueta de um senhor de chapéu – e nenhum movimento brusco delas. A terra não tremia, os pássaros não fugiam; somente os homens trouxeram o apocalipse. Já se passaram quarenta minutos desde a divulgação da notícia. André voltou os olhos para o homem e, quase se arrependendo, disse:

- Você tem cinco minutos.

E partiram, caminhando rapidamente. Dobraram a próxima esquina à direita e depois duas à esquerda, entrando numa rua incomparavelmente mais tranquila que a avenida pela qual seguiam. André via pessoas se abraçando, dançando, cantando, transando no quintal, crianças empinando pipa com os pais, um casal de velhinhos sentados na varanda com gatos nos colos, acariciando-os e observando o mundo acabar. Finalmente, chegaram a um sobrado alaranjado de portas abertas e interior sombrio. Era possível enxergar um sofá torto próximo à porta, uma TV no chão, o vidro da janela quebrado.

- Esta é a casa de minha afilhada, Joana. Pode entrar. A propósito, me chamo Henrique.

André adentrou, seguido de Henrique. Na sala, uma moça de aproximadamente 20 anos sentada no chão, encostada no sofá, de vestido levantado e em estado de choque. No corredor em direção ao fundo da casa, o corpo de um homem com calças na altura dos joelhos. Em cima da mesinha de telefone, um revólver.

- Esta é minha afilhada, André. Seus pais moram em Porto Alegre, e ela veio à Brasília para fazer faculdade. Mora sozinha mas está sob meus cuidados. Desde que chegou aqui e entrou na universidade, este rapaz que o senhor vê se apaixonou por ela, que não quis levar a história adiante, pois ele tinha namorada. No entanto, ele ficou obcecado pela Joana: ocasionalmente, enviava-lhe flores, presentes, já veio declarar-se para ela, no meio da rua; isso tudo sem abandonar a namorada. Preste atenção, é só olhar para seu dedo anelar na mão direita. Ele parecia um tolo riquinho que queria somente entrar nas calças de minha afilhada. Ao saber da notícia que o senhor divulgou, não correu para os braços da namorada ou da família, mas veio diretamente para cá.

Neste momento, um telefone toca. Henrique pega o celular do bolso do rapaz caído e mostra para André. Uma ligação da namorada. Henrique sorri ironicamente, desliga o aparelho, retira a bateria e arremessa-os porta afora. E prosseguiu:

- Bem, quando cheguei aqui, ouvi os berros da Joana já da calçada. E os malditos vizinhos, preocupados com seus supostos fins de vidas, nada faziam, além do que já viu enquanto vínhamos para cá. O resto o senhor já imagina. Sou da Polícia Federal, o que explica a arma em cima da mesa. – E vai em direção à mesa, pega o revólver e guarda em seu coldre. Vai para perto de Joana, agacha-se em frente a ela, esperando uma reação. Nada. Ela permanece imóvel, com o olhar para um horizonte que parecia não ter fim. Henrique toca-lhe os ombros, chama pelo seu nome e não é respondido. – Veja, André. Essa é a consequência de sua notícia mentirosa. Às 17h16 do dia de hoje, quando ver que nada aconteceu, você vai lembrar dela e da vida que ela terá daqui pra frente, com o trauma do que aconteceu e sem a presença do padrinho. Sim, eu irei à delegacia tão logo este caos acabe para me entregar. Agora vá para sua família, despeça-se deles achando que isso aqui vai acabar quando, na verdade, tanto você quanto eu sabemos que o tormento nunca acaba. A humanidade não terá esse privilégio do fim assim tão de repente!

O repórter olha para o chão, cheio de dúvidas. Neste momento, desejou  que a notícia fosse verdadeira; não sabia se conseguiria perdoar a si mesmo caso a informação fosse falsa, com as consequências que esta causara. Além do mais, tudo o que Henrique lhe dissera fazia mais sentido que uma notícia repentina de um fim abrupto, sem explicação. Saiu da casa, procurando por um sinal. Mas a terra não tremia, nem o céu escurecia! Em meio ao pandemônio, os pássaros continuavam a piar normalmente e um casal de cachorros procriava. 17 horas: onde estão os primeiros sinais do fim?

III

André não era o único a não vê-los; aos poucos, o distúrbio nas ruas diminuía gradativamente. “Será que estão desacreditando no fim ou estão aproveitando os últimos minutos para se despedir da vida?”, André pensou.

- Merda, Marta e as crianças!

Havia esquecido da família, que também o abandonara. Nenhum registro de ligação perdida. O torpor da cena o anestesiou e a dúvida do fim do mundo o fez negligenciar a família, como o faz há tempos. Foi o suficiente para ele se odiar pelo esquecimento. Ele corre desesperadamente em direção à sua casa com o celular à mão. No meio tempo em que realiza a ligação para sua esposa, seu telefone toca. É a produtora.

- Onde você está, André?

- Indo para casa. Preciso desligar para ligar para minha família...

- Não, espere! Preciso de você. Tem acompanhado o noticiário?

- Vânia, por que raios eu estaria de olho nas notícias?

- De fato. Você tem para quem correr e abraçar, mas eu não. Estamos todos convencidos de que não haverá fim de mundo!

- Mas como? Quem disse?

- Ninguém disse. Mas olhe à sua volta, nada está acontecendo além da loucura dos homens.

- Sim, isso eu notei.

- A essas alturas, já teríamos de sentir um tremor, uma estrela que aumenta de tamanho no céu ou algum sinal divino, não acha? Falta um pouco mais de 10 minutos para o suposto fim do mundo e nada acontece com o planeta!

- Tudo bem, estamos em dúvida, é estranho mesmo. Mas para que você precisa de mim?

- Quero que seja o primeiro a anunciar em rede nacional a sobrevivência do planeta e da raça humana! – disse, com grande empolgação.

- Você está louca. Eu não sou a pessoa solitária que você é, tenho uma família para me despedir. Adeus e boa sorte! – e desligou imediatamente. Ao longo da vida, já perdera tempo demais ouvindo os outros e esquecendo de quem realmente importava. Discou para sua esposa, que atendeu com tom de voz desesperado, perguntando se ainda o veria antes do fim. Pensou em dizer o quanto corria para abraçar e dizer o quanto ama a esposa e seus filhos, mas a imagem de Joana e a tranquilidade dos céus não saíam da cabeça de André, por mais que ele tentasse deixá-las de lado. Desejou perder por uns minutos este vigor pela notícia e pela informação que a faculdade e profissão lhe ensinaram, mas a ideia de transmitir a mais aliviante notícia, uma hora após da mais trágica, martelava em sua cabeça, turvando-lhe qualquer emoção. Voltou seus olhos para uma criança que segurava uma pedra e atirava em um de seus bonequinhos, fazendo um barulho de explosão. Olhou novamente para o céu para certificar-se que um cometa não viria. Tomou fôlego e disse à esposa:

- Querida, quero que ligue a TV e me veja anunciar a salvação da humanidade.

- O que?! O mundo não vai acabar?

- Não há uma informação oficial a respeito. Mas olhe à sua volta! Nada está acontecendo; foi só uma histeria coletiva. Ninguém sabe que explicação científica é essa, porque esse comunicado do governo surgiu. Querida, tudo está claro agora: não se sabe de onde veio a informação, mas este mundo não vai acabar ainda. Por isso, não volto para casa agora, mas estarei aí para o jantar.

- André, pare com isso! Não se arrisque! Eu e as crianças precisamos de você aqui. E se o fim vier? Como ficaremos sem você nesta hora? Volte para casa, por favor! – ouvia-se um choro engasgado, que demonstrava ao mesmo tempo desespero e decepção.

- Me desculpe, meu amor. Explique às crianças que estarei aí para o jantar e demova-as da ideia do apocalipse. Ele não vai acontecer! Esta noite prometo que irei te amar como nunca, mas preciso estar frente às câmeras para comunicar a salvação. Eu preciso... - E desligou, contatando imediatamente a produtora, com quem combinou se encontrar na Av. das Nações, próximo de onde ambos estavam. Correu até lá abotoando sua camisa, que era a única peça social que ainda lhe restava. Isso lhe era irrelevante, contudo; afinal, seria um anúncio da sobrevivência. Por que não recomeçar tudo, iniciando pela roupa que tanto o sufocava?

Encontraram-se ele, a produtora e o operador de câmera, precisamente às 17h09. A esta altura, as ruas estavam praticamente desertas; era o momento da despedida e resignação. Mas os três estavam confiantes de que logo todos aliviariam-se, e tantos se arrependeriam do que fizeram na última hora, do mesmo modo que um novo governo surgiria. Até a ciência, colosso do mundo contemporâneo se desintegraria! O clima entre os três era ótimo, como nunca havia sido. Um minuto para o recomeço.

- Fique tranquilo, André. Não produzi nenhum texto, pois confio na sua retórica. Sinta-se à vontade para dizer o que bem entender. Estaremos diante de um novo mundo, em que todas essas regras deixarão de sê-las. Portanto, crie-as! – sorriu e ergueu os braços a produtora. André viu nela uma beleza inesperada, inédita, e gostou do que viu. – dez segundos, sorria e seja o porta-voz da nossa salvação!

André olha uma última vez para o sereno céu azul. Os dedos à sua frente contam regressivamente de quatro até um e a mão dá o sinal. Um brilho branco domina todo o planeta e o repórter não enxerga nada além de uma pequena luz vermelha que pisca de modo intermitente à sua frente; não há mais o que dizer.

------

- Assim como em Sobrevida, este conto foi publicado n'O livro do fim do mundo. Quem puder votar lá, eu ficaria muito agradecido!

- Minha amiga Darla Medeiros, do Blog Noites de Outros Dias me convidou para escrever um texto, que está no link a seguir: IntrospecçãoAproveito o espaço para indicar o Blog e o Twitter da autora também.

domingo, 11 de dezembro de 2011

As mentes deles ainda estão naquele mar

       Uma tempestade cai sobre meu teto, e uma água enlameada começa a adentrar pelo chão. “É o fim”, Vítor diz, enquanto abre com pressa sua mala e enfia todos os seus pertences com desespero. Pedro percebe uma leve queda da cobertura no lado esquerdo, consequência de um ferro de base que se desprendia com a chuva encharcando a terra. Nossa barraca precisava de maior firmeza, ou nossa viagem estaria arruinada. Vitor volta a reclamar, contando-nos do quanto se arrependia de ter trazido seu celular caríssimo e seu livro favorito que em breve seriam corroídos pela iminente presença da água. Era um chapado pessimista. 


- Cale a boca e me passe a lanterna -, disse eu, um chapado direto e grosseiro.

Ele me passou a lanterna, liguei-a e coloquei na boca, levando todos a um surto de gargalhadas. Ao que parece, o modo como encaixei a lanterna em minha boca era o de alguém com grande experiência em assuntos do tipo. Mandei todos à merda e saí para fixar a barraca e salvar a maldita viagem. Já estava de saco cheio de vê-los bolar e fumar o dia inteiro e morrerem durante a noite. Sempre gostei de uma sesta, e eles tornavam-a impossível com suas gargalhadas sem razão em pleno dia. Por outro lado, era melhor assim; se nesta viagem eles fizessem isso somente em frente a uma fogueira, durante a noite, eles pensariam demais sobre a vida que fugíamos.

A chuva caía lateralmente, muito forte e me atingia como lâmina que me cortaria por inteiro se demorasse ali; era preciso ranger os dentes para manter a lanterna em minha boca, tamanha a dor que sentia. Sobre o ferro que sustentava a barraca, uma enorme poça de água gelada e enlameada; na posição em que estava, não tinha força para afundar o ferro o suficiente para não ser levado pela água que caía. Ajoelhei-me na lama.

- Vejam o que faço por vocês, filhos da puta! – até hoje quero entender porque estava tão enfurecido. Sempre gostei de tomar banho de chuva. Acho que quando estamos chapados, não somos nós mesmos.

O problema foi resolvido e a barraca voltou a ficar firme. A chuva amenizou também e eu voltei a ouvir o som do mar. Felipe estava em frente ao fogão improvisado, com uma garrafa de batida de maracujá à mão e olhos fixos na brasa que ía se esvaindo. Parecia deprimido. E eu fiquei com um incrível bom humor logo em seguida, mesmo que Bernardo tenha gritado comigo para não entrar molhado e sujo daquele jeito na barraca. Eram quatro homens numa maldita barraca e ele cobrava-nos limpeza.

- Ok, então me dê um trago.

- Toma. Mas vá lá fora, senão fica fedendo por aqui e eu não consigo dormir. - Normalmente eu o mandaria à merda, mas Bernardo parecia desanimado assim, de longe, e eu esperava que o que eu levava comigo o animasse.

Para minha surpresa, assim que toquei seus ombros, ele olhou para mim e foi muito receptivo, com um largo sorriso e muitas histórias íntimas bacanas - de certa forma, as duas coisas parecem sempre andar juntas - para contar. Descobri, depois de anos de amizade, que ele era do tipo chapado melhor amigo; ou então a viagem que o transformara. Lembrávamos dos adolescentes puritanos que éramos e nos divertíamos com a mudança. Cinco anos atrás sequer bebíamos e lá estávamos nós, em frente a um fogão à lenha improvisado, cheios de entorpecentes no corpo, gargalhando como nunca juntos, mas sabedores que éramos muito mais felizes em nossa adolescência. Agora só fugíamos.

O estado alucinado e solícito de Bernardo deu-lhe uma ideia: sugeriu que corrêssemos na chuva e nos jogássemos no mar. Era 10:30 da noite de um sábado qualquer de inverno, e lá estávamos nós, correndo como loucos em direção ao mar. Minha mente corria mais que meu corpo, o que fez com que eu caísse de cara na areia e rendesse grandes gargalhadas, minhas e do Bernardo. E, como a dor era menor que o êxtase, logo levantei e voltei a correr como antes em direção ao mar, que lançava suas ondas, como feixes de luz branca em meio à escuridão no horizonte. E a chuva, que vinha na direção contrária, cortava nossos corpos mas não mais nos incomodava; éramos partes daquela natureza, e se fosse para sucumbirmos diante dela, que fosse!

A água do mar estava deliciosamente morna, contrastando com a gélida que caía dos céus, e um vento que quase congelava-nos a face. Submergirmos era, portanto, a melhor solução. E que sensação quando a cabeça saía da água!

Numa dessas vezes meus olhos se abriram em direção aos céus e, pela primeira vez no fim de semana, vi a lua. Escondida entre as nuvens carregadas, surgia; estava cheia e fantástica! Permitia que víssemos melhor a praia, as árvores dos rochedos na penumbra, o seu reflexo na água onde estávamos. Isto, somado à chuva que já não era mais tão intensa nem tão gelada, fez com que nos sentíssemos, eu e Bernardo, donos de todas as melhores sensações da humanidade em todos os tempos. Não sei ao certo quanto tempo parei – e fui ninado pelo mar - para olhar a lua, mas certamente ali se condensou toda a eternidade.

Bernardo quis nadar para o fundo, mas eu só estava anestesiado, não louco; queria preservar, a partir daquele instante, o máximo de minha vida. Senti que a sensação única daquela noite devia ser carregada o máximo possível dentro de minha alma. Agora aqui está, finalmente perpetuada.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Capítulo de um livro não escrito ou de como se apaga o mundo

E o vento trouxe o frio. Também com ele, a trágica notícia.

Muito embora queira acreditar na não existência desta, sempre soube que este dia chegaria. Afinal, assim são as coisas, acontecem. Não somos quadros ou fotografias, somos algo além. Não deveria fazer frio hoje. Não é a época para tal, mas nunca sabemos para onde o vento irá soprar, não é mesmo? E se soubéssemos, faria realmente alguma diferença?

Apesar de agasalhado, com frio estou. Parece até que este é inevitável e sempre passará pelas frestas mais minúsculas que nem sequer parecem habitar os corpos e coisas, mas habitam. Assim são as coisas. Assim é o mundo. Agora me ocorreu o pensamento: Teria sido a morte dela que ocasionara a súbita mudança, que teria causado tal vento e o que nele é carregado?

Por certo este ambiente combina com tudo isso, não? Que mais poderia acompanhar a tudo, senão um dia nublado e gélido, em pleno verão? Pois é... sei que isso não é nada além de asneiras. Pura divagação sem sentido e falsa em sua mais profunda origem, em sua raiz.

Mas sei também que a raiz deve brotar e ir para algum lugar, qualquer que ele seja. Mas para onde? Gostaria de saber. Tal vontade deve fazer de mim um curioso, não? De qualquer modo, já disse que isso não deve fazer diferença. O vento sempre sopra e o horizonte sempre insiste em sua teimosia: o de nunca ser alcançado.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Sobrevida

      Finalmente, o dia de minha liberdade! Já estou encarcerado há tanto tempo que não sei mais como é sentir o ar da cidade, da beira do mar, do conforto de um quarto. Bem, de qualquer forma, acho que jamais saberei o que é sentir esse ar, já que o que tenho são só lembranças, imaginações. A realidade sempre sempre esteve aquém do mundo criado em minha mente inquieta e esquizofrênica. Hoje, às 17 horas, irei experimentar o sabor da real liberdade e serei, então, capaz de compará-la ao meu mundo imaginário.

Suponho que ela seja entediante, exatamente como a vida que tenho aqui. Estarei encarcerado também, embora de uma forma diferente. Mas acredito que o momento da passagem, esse sim, será o momento mais especial de minha vida. Às 17 horas, lá estará uma família  aliviada, esperando pela minha tão aguardada liberdade. Conforme os meses passavam e a data de hoje se aproximava, eu ficava cada vez mais ansioso, inquieto, torcendo e vivendo pelo futuro; há dias, contudo, que finalmente meu coração está tranquilo, aguardando pacientemente pelo momento, desfrutando cada último momento que estarei aqui, relembrando todas as figuras que encontrei nas úmidas e rachadas paredes e me despedindo dos guardas que, se não foram de todos cordiais (afinal, estão aqui para nos punir e não nos gratificar), foram respeitosos, na medida do possível.

Também despedi-me dos amigos que ainda restavam. Aqui na prisão, ou você se torna livre rapidamente, se corrompe a ponto de não ser mais confiável ou é morto. As exceções – e acredito que eu seja uma delas – são os que conseguem, depois de muito esforço, aceitar este lugar como sua morada e, assim, tentam tornar a vida aqui o menos horrível possível. Entre estas pessoas, há uma verdadeira amizade, embora eu não pretenda saber mais nada sobre eles a partir do instante que deixar este lugar. Que cada um siga seu caminho.

Ao sair daqui, o que mais quero é abraçar minha mãe. Filha de um viciado em cocaína e de uma desleixada histérica com irmãos pedófilos, esta mulher sofreu os maiores abusos possíveis que uma pessoa poderia sofrer durante uma infância e ainda assim tentou dar-me um pouco de dignidade. Infelizmente, a psicanálise estava certa e ela se envolveu com homens com os mesmos problemas de meus avós e tio-avós. Durante minha infância, lidamos com viciados que pareciam sentir gosto em nos agredir e cheios de desejos sexuais perversos. Não pude manter a dignidade como minha mãe e, como uma bola de neve, comecei com um assalto e, meses depois, já fui capaz de um latrocínio. Sei que sou um dos poucos, mas aqui foi o lugar onde pude obter certa dignidade, e isso eu devo muito ao maestro que ficou por aqui por dois anos, lecionando-nos música e estimulando o contato com a leitura.

15h40: me trouxeram uma roupa, pediram pra eu vestí-la e aguardar que me buscassem. Perguntei se a família já estava lá fora e se estavam ansiosos.

- Claro que estão! Chegaram aqui de manhã e mal podem esperar para vê-lo. Agora vista-se e espere que daqui meia hora viremos te buscar.

Vesti-me e aguardei, silencioso. Ouvia, bem ao longe, gritos de despedida dirigidos a mim. Quaisquer que sejam as circunstâncias, é bom saber que sairá de um lugar fazendo falta a ele.

Meia hora depois, como prometido, vieram me buscar. Botaram-me as algemas e me carregaram pelo corredor. Tentei dissuadí-los da ideia da necessidade das algemas, que muito me incomodavam, mas eles, laconicamente, responderam que “são as ordens”. Dez minutos de caminhada, entre o abrir e fechar de grades e os passos rituais e coordenados dos guardas, com um barulho de passos e do molho de chaves que eu havia me esquecido mas que neste instante me era insuportável. Finalmente, a última porta, onde eu encontraria minha liberdade. Paramos em frente a ela, aguardando que alguém a abrisse, mas nada; na sala ao lado, gritos desesperados. Os guardas se separam e um deles vai até a porta ao lado: é onde está a família que me aguarda. Do lado de cá, o que estava comigo abre a porta à nossa frente. Então parece que o homem de branco aplicou a injeção em si mesmo. Permaneci silencioso, mas passei a acreditar que não haveria mais execução. O guarda na sala ao lado volta correndo e pede para eu entrar. Talvez a família que lá estava me executaria com as próprias mãos.

Poucos minutos depois, descobrimos que o mundo acabaria às 17h15. A liberdade viria para todos, afinal.. Não me pareceu justo: eu tive tempo para me preparar e aceitar minha liberdade, mas o semblante dos guardas ao meu lado era para mim a demonstração de que ninguém mais queria o mesmo destino. Eles decidiram partir para ver se conseguiam se despedir das próprias famílias. Os alto falantes alertavam a todos os guardas sobre a presença de uma multidão lá fora querendo entrar para se despedir dos entes trancafiados aqui. Obviamente, todos abandonaram seus postos, todas as grades foram abertas e o último contato se concretizaria. Em pouquíssimos minutos, não havia mais sequer uma pessoa ali, exceto eu e a família que tanto aguardava por minha morte, abraçados uns aos outros aos prantos, na sala ao lado. Desistiram da ideia de fazer justiça com as próprias mãos, e pela primeira vez lamentei profundamente a consequência do meu ato.

Eu voltei para minha cela. O caminho, que na ida levou dez minutos, na volta foi feito em não muito mais que três. As grades atrasam nossas vidas mesmo. Pelo caminho, vi que o relógio marcava 16h55. Ou seja, a hora em que estava planejada a minha liberdade, continuei encarcerado. Mas isso seria só por mais um breve instante; ganhei uma sobrevida para relembrar as figuras nas paredes úmidas e rachadas e fiquei grato por isso.

------

Este é um texto escrito para O Livro do Fim do Mundo, seguindo a temática sugerida por ele. Lá, é possível votar e classificar esta história.  Quem quiser e puder, agradeço muito!