I
O relógio marca 16h16. André ajeita seu terno e sua
gravata, pigarreia, engole seco. Enxuga o suor frio que escorre na lateral de
seu rosto e seus olhar está desconsolado, em direção às pessoas enlouquecidas que
correm desesperadas para seus carros e tem em mãos os celulares para dizer, aos
prantos, o quanto amam a pessoa do outro lado da linha. Nunca presenciara tantas
declarações ao mesmo tempo; pensa que deve fazer o mesmo, assim que terminar
seu trabalho. Entregam-lhe o microfone e os dedos à sua frente contam
regressivamente de quatro até um e a mão dá o sinal. Uma luz vermelha pisca de
modo intermitente à sua frente; é hora de dizer.
André hesita. Seu piscar de olhos é acelerado, a boca
abre mas não diz nada, seu respirar é profundo e faz com que seus ombros se
encolham. A produtora gesticula desesperadamente, esperando que ele leia o que
está no papel na mão do repórter. Ele pensa no quão insuportável ela é, não
dando-lhe uma trégua nem neste instante, em que a grande notícia da humanidade
devia ser repassada. “Não nos prepararam na faculdade para o momento da notícia
de nossas vidas”, pensa e sorri, ironicamente. Reúne forças para respirar
fundo, pigarreia uma última vez, olha para a câmera e enfim declara:
- Aos cidadãos e cidadãs brasileiras...devo
acrescentar a todos os seres humanos que me veem agora...é com profunda
lamentação que exercerei minha profissão pela última vez.
(pausa)
- A informação que será transmitida agora é trágica e
aflige a todos nós, e infelizmente é oficial: o mundo, a vida na Terra como a
conhecemos, deixará de existir em uma hora.
(histeria ao fundo contrastando com o silêncio
momentáneo de André)
- Representantes do governo e a presidenta inforrmaram,
direto do Palácio da Alvorada, que há unanimidade sobre o evento na comunidade
científica, embora a causa não tenha sido revelada. Segundo nota oficial, “a
causa para o fim do planeta e da existência da raça humana não é a questão mais
importante do momento. Agora é hora de nos unirmos e despedirmo-nos de nossos
entes amados. É hora de rezarmos para garantirmos nossa partida de forma
tranquila e ter a certeza de que logo estaremos juntos de nossos familiares que
já partiram”. – André volta seus olhos para a câmera e reflete por um momento –
Que assim seja.
Abaixa o microfone e vê a produtora enfurecida,
exigindo que ele repita a informação. Ele volta os olhos para as lentes.
- Repetindo a informação: a raça humana deixará de
existir às 17h15 do dia de hoje. É hora de nos despedirmos. André Blanco
Martins, direto de Brasília.
A transmissão é encerrada. André larga o microfone,
despede-se do câmera, companheiro de longa data, sequer olha para a produtora e
parte para casa, ali em Brasília, onde fixara residência com a família há dois
meses. “Sorte”, pensou.
II
A correria, que antes era restrita às poucas pessoas
que já sabiam da notícia, torna-se um fulminante tsunami de pessoas abandonando
os prédios. Ele então viu-se no dilema de reportar este acontecimento e ter o
maior reconhecimento possível num futuro pós falso alarme, onde os termos
“dedicação”, “entrega” e correlatos surgiriam, sejá lá o que signifiquem, mas
que também poderia significar a sua mais inútil jornada de trabalho na vida
(caso o mundo viesse a acabar mesmo), ou despedir-se adequadamente das pessoas
que ama. Ele não sabia se acreditava na informação científica, que tantas vezes
já errou em suas previsões; por outro lado, não estava disposto a se arriscar.
De qualquer forma, ninguém (nem ele mesmo) o perdoaria por não comparecer à
iminente despedida.
Mas o caos nas ruas dificultava sua locomoção e o
distraía de sua prioridade: acidentes de trânsito, histeria coletiva, saques a
lojas e mercados, incêndios em toda a parte, blecautes. André presenciava o
poder de suas palavras. Em meio à multidão enfurecida, um destacado homem,
vestindo ainda um terno muito alinhado, aproxima-se de André com ar sóbrio:
- Quero ter uma conversa com o senhor.
- Não posso, tenho que ir encontrar minha família. –
respondeu prontamente André, acelerando os passos.
- Não será preciso, você a encontra depois.
O repórter para por um instante para olhar com
incredulidade a calma que distinguia aquele homem de todos os outros. Qual o assunto
que aquele homem quer tratar? Até então, André temia ter sido reconhecido, mas
parecia que aquele homem estava alienado de todo o mundo nos últimos minutos.
Sendo assim, do que ele queria falar?
- Por acaso o senhor viu ou ouviu a notícia que acabaram
de divulgar?
- Mas é claro! A esta altura, só quem estava
inconsciente nos últimos minutos não sabe o que está acontecendo. Eu a ouvi de
você mesmo.
- Então o que faz aqui?! Não tem uma família para
abraçar, uma esposa para beijar, um desejo para se realizar?
- Obviamente. Apostaria que é assim com todos, mesmo
os que estão queimando os carros e saqueando as lojas. A questão é que eu não
acredito que o mundo acabará em uma hora, e quero que veja com seus próprios
olhos a consequência de sua notícia.
- Veja...seja lá qual for seu nome. Eu só transmiti a
notícia, não sou responsável pelo fim do mundo. Me dê licença, preciso me
despedir de quem amo.
- Sim, uma notícia amparada no que a ciência disse.
Quantas vezes ela já errou? Não sabemos a causa nem quem realizou o estudo.
Portanto, como saber se é verdade? O senhor simplesmente divulgou algo que o
governo disse, mas que ninguém sabe ao certo. Aliás, é muito estranho o governo
soltar uma notícia tão importante tão em cima da hora, não acha? Se for verdade,
há quanto tempo esse evento está sendo estudado? Uma hora antes dele ocorrer é
que se chegou ao consenso? Não é muito conveniente, já que não dá tempo para
confirmar a notícia?
- Desculpe, mas já lidei com muitos paranóicos como o
senhor em toda a minha vida. Dei-lhe alguma atenção pela forma como está
vestido, diferente do tipo comum que adora teorias da conspiração.
- Não é hora para julgamentos, caro André. Peço-lhe
cinco minutos para entender o real poder de suas palavras. Olhe para o céu: vê
algum fim iminente?
Se no solo os humanos transformaram o lugar num inferno,
realmente aquele homem tinha razão: o céu estava azul e tranquilo, com poucas
nuvens – uma delas com o formato da sillhueta de um senhor de chapéu – e nenhum
movimento brusco delas. A terra não tremia, os pássaros não fugiam; somente os
homens trouxeram o apocalipse. Já se passaram quarenta minutos desde a
divulgação da notícia. André voltou os olhos para o homem e, quase se
arrependendo, disse:
- Você tem cinco minutos.
E partiram, caminhando rapidamente. Dobraram a próxima
esquina à direita e depois duas à esquerda, entrando numa rua incomparavelmente
mais tranquila que a avenida pela qual seguiam. André via pessoas se abraçando,
dançando, cantando, transando no quintal, crianças empinando pipa com os pais,
um casal de velhinhos sentados na varanda com gatos nos colos, acariciando-os e
observando o mundo acabar. Finalmente, chegaram a um sobrado alaranjado de
portas abertas e interior sombrio. Era possível enxergar um sofá torto próximo
à porta, uma TV no chão, o vidro da janela quebrado.
- Esta é a casa de minha afilhada, Joana. Pode entrar.
A propósito, me chamo Henrique.
André adentrou, seguido de Henrique. Na sala, uma moça
de aproximadamente 20 anos sentada no chão, encostada no sofá, de vestido
levantado e em estado de choque. No corredor em direção ao fundo da casa, o
corpo de um homem com calças na altura dos joelhos. Em cima da mesinha de
telefone, um revólver.
- Esta é minha afilhada, André. Seus pais moram em
Porto Alegre, e ela veio à Brasília para fazer faculdade. Mora sozinha mas está
sob meus cuidados. Desde que chegou aqui e entrou na universidade, este rapaz
que o senhor vê se apaixonou por ela, que não quis levar a história adiante,
pois ele tinha namorada. No entanto, ele ficou obcecado pela Joana:
ocasionalmente, enviava-lhe flores, presentes, já veio declarar-se para ela, no
meio da rua; isso tudo sem abandonar a namorada. Preste atenção, é só olhar
para seu dedo anelar na mão direita. Ele parecia um tolo riquinho que queria
somente entrar nas calças de minha afilhada. Ao saber da notícia que o senhor
divulgou, não correu para os braços da namorada ou da família, mas veio
diretamente para cá.
Neste momento, um telefone toca. Henrique pega o
celular do bolso do rapaz caído e mostra para André. Uma ligação da namorada.
Henrique sorri ironicamente, desliga o aparelho, retira a bateria e arremessa-os
porta afora. E prosseguiu:
- Bem, quando cheguei aqui, ouvi os berros da Joana já
da calçada. E os malditos vizinhos, preocupados com seus supostos fins de vidas,
nada faziam, além do que já viu enquanto vínhamos para cá. O resto o senhor já
imagina. Sou da Polícia Federal, o que explica a arma em cima da mesa. – E vai
em direção à mesa, pega o revólver e guarda em seu coldre. Vai para perto de
Joana, agacha-se em frente a ela, esperando uma reação. Nada. Ela permanece
imóvel, com o olhar para um horizonte que parecia não ter fim. Henrique
toca-lhe os ombros, chama pelo seu nome e não é respondido. – Veja, André. Essa
é a consequência de sua notícia mentirosa. Às 17h16 do dia de hoje, quando ver
que nada aconteceu, você vai lembrar dela e da vida que ela terá daqui pra
frente, com o trauma do que aconteceu e sem a presença do padrinho. Sim, eu
irei à delegacia tão logo este caos acabe para me entregar. Agora vá para sua
família, despeça-se deles achando que isso aqui vai acabar quando, na verdade,
tanto você quanto eu sabemos que o tormento nunca acaba. A humanidade não terá
esse privilégio do fim assim tão de repente!
O repórter olha para o chão, cheio de dúvidas. Neste
momento, desejou que a notícia fosse
verdadeira; não sabia se conseguiria perdoar a si mesmo caso a informação fosse
falsa, com as consequências que esta causara. Além do mais, tudo o que Henrique
lhe dissera fazia mais sentido que uma notícia repentina de um fim abrupto, sem
explicação. Saiu da casa, procurando por um sinal. Mas a terra não tremia, nem
o céu escurecia! Em meio ao pandemônio, os pássaros continuavam a piar
normalmente e um casal de cachorros procriava. 17 horas: onde estão os
primeiros sinais do fim?
III
André não era o único a não vê-los; aos poucos, o
distúrbio nas ruas diminuía gradativamente. “Será que estão desacreditando no
fim ou estão aproveitando os últimos minutos para se despedir da vida?”, André
pensou.
- Merda, Marta e as crianças!
Havia esquecido da família, que também o abandonara.
Nenhum registro de ligação perdida. O torpor da cena o anestesiou e a dúvida do
fim do mundo o fez negligenciar a família, como o faz há tempos. Foi o
suficiente para ele se odiar pelo esquecimento. Ele corre desesperadamente em
direção à sua casa com o celular à mão. No meio tempo em que realiza a ligação
para sua esposa, seu telefone toca. É a produtora.
- Onde você está, André?
- Indo para casa. Preciso desligar para ligar para
minha família...
- Não, espere! Preciso de você. Tem acompanhado o
noticiário?
- Vânia, por que raios eu estaria de olho nas
notícias?
- De fato. Você tem para quem correr e abraçar, mas eu
não. Estamos todos convencidos de que não haverá fim de mundo!
- Mas como? Quem disse?
- Ninguém disse. Mas olhe à sua volta, nada está
acontecendo além da loucura dos homens.
- Sim, isso eu notei.
- A essas alturas, já teríamos de sentir um tremor,
uma estrela que aumenta de tamanho no céu ou algum sinal divino, não acha?
Falta um pouco mais de 10 minutos para o suposto fim do mundo e nada acontece
com o planeta!
- Tudo bem, estamos em dúvida, é estranho mesmo. Mas
para que você precisa de mim?
- Quero que seja o primeiro a anunciar em rede
nacional a sobrevivência do planeta e da raça humana! – disse, com grande
empolgação.
- Você está louca. Eu não sou a pessoa solitária que
você é, tenho uma família para me despedir. Adeus e boa sorte! – e desligou
imediatamente. Ao longo da vida, já perdera tempo demais ouvindo os outros e
esquecendo de quem realmente importava. Discou para sua esposa, que atendeu com
tom de voz desesperado, perguntando se ainda o veria antes do fim. Pensou em
dizer o quanto corria para abraçar e dizer o quanto ama a esposa e seus filhos,
mas a imagem de Joana e a tranquilidade dos céus não saíam da cabeça de André,
por mais que ele tentasse deixá-las de lado. Desejou perder por uns minutos
este vigor pela notícia e pela informação que a faculdade e profissão lhe
ensinaram, mas a ideia de transmitir a mais aliviante notícia, uma hora após da
mais trágica, martelava em sua cabeça, turvando-lhe qualquer emoção. Voltou
seus olhos para uma criança que segurava uma pedra e atirava em um de seus
bonequinhos, fazendo um barulho de explosão. Olhou novamente para o céu para
certificar-se que um cometa não viria. Tomou fôlego e disse à esposa:
- Querida, quero que ligue a TV e me veja anunciar a
salvação da humanidade.
- O que?! O mundo não vai acabar?
- Não há uma informação oficial a respeito. Mas olhe à
sua volta! Nada está acontecendo; foi só uma histeria coletiva. Ninguém sabe
que explicação científica é essa, porque esse comunicado do governo surgiu.
Querida, tudo está claro agora: não se sabe de onde veio a informação, mas este
mundo não vai acabar ainda. Por isso, não volto para casa agora, mas estarei aí
para o jantar.
- André, pare com isso! Não se arrisque! Eu e as
crianças precisamos de você aqui. E se o fim vier? Como ficaremos sem você
nesta hora? Volte para casa, por favor! – ouvia-se um choro engasgado, que
demonstrava ao mesmo tempo desespero e decepção.
- Me desculpe, meu amor. Explique às crianças que
estarei aí para o jantar e demova-as da ideia do apocalipse. Ele não vai
acontecer! Esta noite prometo que irei te amar como nunca, mas preciso estar
frente às câmeras para comunicar a salvação. Eu preciso... - E desligou,
contatando imediatamente a produtora, com quem combinou se encontrar na Av. das
Nações, próximo de onde ambos estavam. Correu até lá abotoando sua camisa, que
era a única peça social que ainda lhe restava. Isso lhe era irrelevante,
contudo; afinal, seria um anúncio da sobrevivência. Por que não recomeçar tudo,
iniciando pela roupa que tanto o sufocava?
Encontraram-se ele, a produtora e o operador de
câmera, precisamente às 17h09. A esta altura, as ruas estavam praticamente
desertas; era o momento da despedida e resignação. Mas os três estavam
confiantes de que logo todos aliviariam-se, e tantos se arrependeriam do que
fizeram na última hora, do mesmo modo que um novo governo surgiria. Até a
ciência, colosso do mundo contemporâneo se desintegraria! O clima entre os três
era ótimo, como nunca havia sido. Um minuto para o recomeço.
- Fique tranquilo, André. Não produzi nenhum texto, pois
confio na sua retórica. Sinta-se à vontade para dizer o que bem entender.
Estaremos diante de um novo mundo, em que todas essas regras deixarão de
sê-las. Portanto, crie-as! – sorriu e ergueu os braços a produtora. André viu
nela uma beleza inesperada, inédita, e gostou do que viu. – dez segundos,
sorria e seja o porta-voz da nossa salvação!
André olha uma última vez para o sereno céu azul. Os
dedos à sua frente contam regressivamente de quatro até um e a mão dá o sinal.
Um brilho branco domina todo o planeta e o repórter não enxerga nada além de
uma pequena luz vermelha que pisca de modo intermitente à sua frente; não há
mais o que dizer.
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- Minha amiga Darla Medeiros, do Blog Noites de Outros Dias me convidou para escrever um texto, que está no link a seguir: Introspecção. Aproveito o espaço para indicar o Blog e o Twitter da autora também.