sábado, 3 de dezembro de 2011

Sobrevida

      Finalmente, o dia de minha liberdade! Já estou encarcerado há tanto tempo que não sei mais como é sentir o ar da cidade, da beira do mar, do conforto de um quarto. Bem, de qualquer forma, acho que jamais saberei o que é sentir esse ar, já que o que tenho são só lembranças, imaginações. A realidade sempre sempre esteve aquém do mundo criado em minha mente inquieta e esquizofrênica. Hoje, às 17 horas, irei experimentar o sabor da real liberdade e serei, então, capaz de compará-la ao meu mundo imaginário.

Suponho que ela seja entediante, exatamente como a vida que tenho aqui. Estarei encarcerado também, embora de uma forma diferente. Mas acredito que o momento da passagem, esse sim, será o momento mais especial de minha vida. Às 17 horas, lá estará uma família  aliviada, esperando pela minha tão aguardada liberdade. Conforme os meses passavam e a data de hoje se aproximava, eu ficava cada vez mais ansioso, inquieto, torcendo e vivendo pelo futuro; há dias, contudo, que finalmente meu coração está tranquilo, aguardando pacientemente pelo momento, desfrutando cada último momento que estarei aqui, relembrando todas as figuras que encontrei nas úmidas e rachadas paredes e me despedindo dos guardas que, se não foram de todos cordiais (afinal, estão aqui para nos punir e não nos gratificar), foram respeitosos, na medida do possível.

Também despedi-me dos amigos que ainda restavam. Aqui na prisão, ou você se torna livre rapidamente, se corrompe a ponto de não ser mais confiável ou é morto. As exceções – e acredito que eu seja uma delas – são os que conseguem, depois de muito esforço, aceitar este lugar como sua morada e, assim, tentam tornar a vida aqui o menos horrível possível. Entre estas pessoas, há uma verdadeira amizade, embora eu não pretenda saber mais nada sobre eles a partir do instante que deixar este lugar. Que cada um siga seu caminho.

Ao sair daqui, o que mais quero é abraçar minha mãe. Filha de um viciado em cocaína e de uma desleixada histérica com irmãos pedófilos, esta mulher sofreu os maiores abusos possíveis que uma pessoa poderia sofrer durante uma infância e ainda assim tentou dar-me um pouco de dignidade. Infelizmente, a psicanálise estava certa e ela se envolveu com homens com os mesmos problemas de meus avós e tio-avós. Durante minha infância, lidamos com viciados que pareciam sentir gosto em nos agredir e cheios de desejos sexuais perversos. Não pude manter a dignidade como minha mãe e, como uma bola de neve, comecei com um assalto e, meses depois, já fui capaz de um latrocínio. Sei que sou um dos poucos, mas aqui foi o lugar onde pude obter certa dignidade, e isso eu devo muito ao maestro que ficou por aqui por dois anos, lecionando-nos música e estimulando o contato com a leitura.

15h40: me trouxeram uma roupa, pediram pra eu vestí-la e aguardar que me buscassem. Perguntei se a família já estava lá fora e se estavam ansiosos.

- Claro que estão! Chegaram aqui de manhã e mal podem esperar para vê-lo. Agora vista-se e espere que daqui meia hora viremos te buscar.

Vesti-me e aguardei, silencioso. Ouvia, bem ao longe, gritos de despedida dirigidos a mim. Quaisquer que sejam as circunstâncias, é bom saber que sairá de um lugar fazendo falta a ele.

Meia hora depois, como prometido, vieram me buscar. Botaram-me as algemas e me carregaram pelo corredor. Tentei dissuadí-los da ideia da necessidade das algemas, que muito me incomodavam, mas eles, laconicamente, responderam que “são as ordens”. Dez minutos de caminhada, entre o abrir e fechar de grades e os passos rituais e coordenados dos guardas, com um barulho de passos e do molho de chaves que eu havia me esquecido mas que neste instante me era insuportável. Finalmente, a última porta, onde eu encontraria minha liberdade. Paramos em frente a ela, aguardando que alguém a abrisse, mas nada; na sala ao lado, gritos desesperados. Os guardas se separam e um deles vai até a porta ao lado: é onde está a família que me aguarda. Do lado de cá, o que estava comigo abre a porta à nossa frente. Então parece que o homem de branco aplicou a injeção em si mesmo. Permaneci silencioso, mas passei a acreditar que não haveria mais execução. O guarda na sala ao lado volta correndo e pede para eu entrar. Talvez a família que lá estava me executaria com as próprias mãos.

Poucos minutos depois, descobrimos que o mundo acabaria às 17h15. A liberdade viria para todos, afinal.. Não me pareceu justo: eu tive tempo para me preparar e aceitar minha liberdade, mas o semblante dos guardas ao meu lado era para mim a demonstração de que ninguém mais queria o mesmo destino. Eles decidiram partir para ver se conseguiam se despedir das próprias famílias. Os alto falantes alertavam a todos os guardas sobre a presença de uma multidão lá fora querendo entrar para se despedir dos entes trancafiados aqui. Obviamente, todos abandonaram seus postos, todas as grades foram abertas e o último contato se concretizaria. Em pouquíssimos minutos, não havia mais sequer uma pessoa ali, exceto eu e a família que tanto aguardava por minha morte, abraçados uns aos outros aos prantos, na sala ao lado. Desistiram da ideia de fazer justiça com as próprias mãos, e pela primeira vez lamentei profundamente a consequência do meu ato.

Eu voltei para minha cela. O caminho, que na ida levou dez minutos, na volta foi feito em não muito mais que três. As grades atrasam nossas vidas mesmo. Pelo caminho, vi que o relógio marcava 16h55. Ou seja, a hora em que estava planejada a minha liberdade, continuei encarcerado. Mas isso seria só por mais um breve instante; ganhei uma sobrevida para relembrar as figuras nas paredes úmidas e rachadas e fiquei grato por isso.

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Este é um texto escrito para O Livro do Fim do Mundo, seguindo a temática sugerida por ele. Lá, é possível votar e classificar esta história.  Quem quiser e puder, agradeço muito!

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