Uma tempestade cai sobre meu teto, e uma água enlameada
começa a adentrar pelo chão. “É o fim”, Vítor diz, enquanto abre com pressa sua
mala e enfia todos os seus pertences com desespero. Pedro percebe uma leve
queda da cobertura no lado esquerdo, consequência de um ferro de base que se
desprendia com a chuva encharcando a terra. Nossa barraca precisava de maior
firmeza, ou nossa viagem estaria arruinada. Vitor volta a reclamar,
contando-nos do quanto se arrependia de ter trazido seu celular caríssimo e seu
livro favorito que em breve seriam corroídos pela iminente presença da água.
Era um chapado pessimista.
- Cale a boca e me passe a lanterna -, disse eu, um
chapado direto e grosseiro.
Ele me passou a lanterna, liguei-a e coloquei na boca,
levando todos a um surto de gargalhadas. Ao que parece, o modo como encaixei a
lanterna em minha boca era o de alguém com grande experiência em assuntos do
tipo. Mandei todos à merda e saí para fixar a barraca e salvar a maldita
viagem. Já estava de saco cheio de vê-los bolar e fumar o dia inteiro e
morrerem durante a noite. Sempre gostei de uma sesta, e eles tornavam-a
impossível com suas gargalhadas sem razão em pleno dia. Por outro lado, era
melhor assim; se nesta viagem eles fizessem isso somente em frente a uma
fogueira, durante a noite, eles pensariam demais sobre a vida que fugíamos.
A chuva caía lateralmente, muito forte e me atingia como lâmina
que me cortaria por inteiro se demorasse ali; era preciso ranger os dentes para
manter a lanterna em minha boca, tamanha a dor que sentia. Sobre o ferro que
sustentava a barraca, uma enorme poça de água gelada e enlameada; na posição em
que estava, não tinha força para afundar o ferro o suficiente para não ser
levado pela água que caía. Ajoelhei-me na lama.
- Vejam o que faço por vocês, filhos da puta! – até hoje
quero entender porque estava tão enfurecido. Sempre gostei de tomar banho de
chuva. Acho que quando estamos chapados, não somos nós mesmos.
O problema foi resolvido e a barraca voltou a ficar
firme. A chuva amenizou também e eu voltei a ouvir o som do mar. Felipe estava
em frente ao fogão improvisado, com uma garrafa de batida de maracujá à mão e
olhos fixos na brasa que ía se esvaindo. Parecia deprimido. E eu fiquei com um
incrível bom humor logo em seguida, mesmo que Bernardo tenha gritado comigo para
não entrar molhado e sujo daquele jeito na barraca. Eram quatro homens numa
maldita barraca e ele cobrava-nos limpeza.
- Ok, então me dê um trago.
- Toma. Mas vá lá fora, senão fica fedendo por aqui e eu
não consigo dormir. - Normalmente eu o mandaria à merda, mas Bernardo parecia
desanimado assim, de longe, e eu esperava que o que eu levava comigo o
animasse.
Para minha surpresa, assim que toquei seus ombros, ele
olhou para mim e foi muito receptivo, com um largo sorriso e muitas histórias
íntimas bacanas - de certa forma, as duas coisas parecem sempre andar juntas -
para contar. Descobri, depois de anos de amizade, que ele era do tipo chapado
melhor amigo; ou então a viagem que o transformara. Lembrávamos dos
adolescentes puritanos que éramos e nos divertíamos com a mudança. Cinco anos
atrás sequer bebíamos e lá estávamos nós, em frente a um fogão à lenha
improvisado, cheios de entorpecentes no corpo, gargalhando como nunca juntos,
mas sabedores que éramos muito mais felizes em nossa adolescência. Agora só
fugíamos.
O estado alucinado e solícito de Bernardo deu-lhe uma
ideia: sugeriu que corrêssemos na chuva e nos jogássemos no mar. Era 10:30 da
noite de um sábado qualquer de inverno, e lá estávamos nós, correndo como
loucos em direção ao mar. Minha mente corria mais que meu corpo, o que fez com
que eu caísse de cara na areia e rendesse grandes gargalhadas, minhas e do
Bernardo. E, como a dor era menor que o êxtase, logo levantei e voltei a correr
como antes em direção ao mar, que lançava suas ondas, como feixes de luz branca
em meio à escuridão no horizonte. E a chuva, que vinha na direção contrária,
cortava nossos corpos mas não mais nos incomodava; éramos partes daquela
natureza, e se fosse para sucumbirmos diante dela, que fosse!
A água do mar estava deliciosamente morna, contrastando
com a gélida que caía dos céus, e um vento que quase congelava-nos a face.
Submergirmos era, portanto, a melhor solução. E que sensação quando a cabeça
saía da água!
Numa dessas vezes meus olhos se abriram em direção aos
céus e, pela primeira vez no fim de semana, vi a lua. Escondida entre as nuvens
carregadas, surgia; estava cheia e fantástica! Permitia que víssemos melhor a
praia, as árvores dos rochedos na penumbra, o seu reflexo na água onde
estávamos. Isto, somado à chuva que já não era mais tão intensa nem tão gelada,
fez com que nos sentíssemos, eu e Bernardo, donos de todas as melhores
sensações da humanidade em todos os tempos. Não sei ao certo quanto tempo parei
– e fui ninado pelo mar - para olhar a lua, mas certamente ali se condensou
toda a eternidade.
Bernardo quis nadar para o fundo, mas eu só estava
anestesiado, não louco; queria preservar, a partir daquele instante, o máximo
de minha vida. Senti que a sensação única daquela noite devia ser carregada o
máximo possível dentro de minha alma. Agora aqui está, finalmente perpetuada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário