domingo, 11 de dezembro de 2011

As mentes deles ainda estão naquele mar

       Uma tempestade cai sobre meu teto, e uma água enlameada começa a adentrar pelo chão. “É o fim”, Vítor diz, enquanto abre com pressa sua mala e enfia todos os seus pertences com desespero. Pedro percebe uma leve queda da cobertura no lado esquerdo, consequência de um ferro de base que se desprendia com a chuva encharcando a terra. Nossa barraca precisava de maior firmeza, ou nossa viagem estaria arruinada. Vitor volta a reclamar, contando-nos do quanto se arrependia de ter trazido seu celular caríssimo e seu livro favorito que em breve seriam corroídos pela iminente presença da água. Era um chapado pessimista. 


- Cale a boca e me passe a lanterna -, disse eu, um chapado direto e grosseiro.

Ele me passou a lanterna, liguei-a e coloquei na boca, levando todos a um surto de gargalhadas. Ao que parece, o modo como encaixei a lanterna em minha boca era o de alguém com grande experiência em assuntos do tipo. Mandei todos à merda e saí para fixar a barraca e salvar a maldita viagem. Já estava de saco cheio de vê-los bolar e fumar o dia inteiro e morrerem durante a noite. Sempre gostei de uma sesta, e eles tornavam-a impossível com suas gargalhadas sem razão em pleno dia. Por outro lado, era melhor assim; se nesta viagem eles fizessem isso somente em frente a uma fogueira, durante a noite, eles pensariam demais sobre a vida que fugíamos.

A chuva caía lateralmente, muito forte e me atingia como lâmina que me cortaria por inteiro se demorasse ali; era preciso ranger os dentes para manter a lanterna em minha boca, tamanha a dor que sentia. Sobre o ferro que sustentava a barraca, uma enorme poça de água gelada e enlameada; na posição em que estava, não tinha força para afundar o ferro o suficiente para não ser levado pela água que caía. Ajoelhei-me na lama.

- Vejam o que faço por vocês, filhos da puta! – até hoje quero entender porque estava tão enfurecido. Sempre gostei de tomar banho de chuva. Acho que quando estamos chapados, não somos nós mesmos.

O problema foi resolvido e a barraca voltou a ficar firme. A chuva amenizou também e eu voltei a ouvir o som do mar. Felipe estava em frente ao fogão improvisado, com uma garrafa de batida de maracujá à mão e olhos fixos na brasa que ía se esvaindo. Parecia deprimido. E eu fiquei com um incrível bom humor logo em seguida, mesmo que Bernardo tenha gritado comigo para não entrar molhado e sujo daquele jeito na barraca. Eram quatro homens numa maldita barraca e ele cobrava-nos limpeza.

- Ok, então me dê um trago.

- Toma. Mas vá lá fora, senão fica fedendo por aqui e eu não consigo dormir. - Normalmente eu o mandaria à merda, mas Bernardo parecia desanimado assim, de longe, e eu esperava que o que eu levava comigo o animasse.

Para minha surpresa, assim que toquei seus ombros, ele olhou para mim e foi muito receptivo, com um largo sorriso e muitas histórias íntimas bacanas - de certa forma, as duas coisas parecem sempre andar juntas - para contar. Descobri, depois de anos de amizade, que ele era do tipo chapado melhor amigo; ou então a viagem que o transformara. Lembrávamos dos adolescentes puritanos que éramos e nos divertíamos com a mudança. Cinco anos atrás sequer bebíamos e lá estávamos nós, em frente a um fogão à lenha improvisado, cheios de entorpecentes no corpo, gargalhando como nunca juntos, mas sabedores que éramos muito mais felizes em nossa adolescência. Agora só fugíamos.

O estado alucinado e solícito de Bernardo deu-lhe uma ideia: sugeriu que corrêssemos na chuva e nos jogássemos no mar. Era 10:30 da noite de um sábado qualquer de inverno, e lá estávamos nós, correndo como loucos em direção ao mar. Minha mente corria mais que meu corpo, o que fez com que eu caísse de cara na areia e rendesse grandes gargalhadas, minhas e do Bernardo. E, como a dor era menor que o êxtase, logo levantei e voltei a correr como antes em direção ao mar, que lançava suas ondas, como feixes de luz branca em meio à escuridão no horizonte. E a chuva, que vinha na direção contrária, cortava nossos corpos mas não mais nos incomodava; éramos partes daquela natureza, e se fosse para sucumbirmos diante dela, que fosse!

A água do mar estava deliciosamente morna, contrastando com a gélida que caía dos céus, e um vento que quase congelava-nos a face. Submergirmos era, portanto, a melhor solução. E que sensação quando a cabeça saía da água!

Numa dessas vezes meus olhos se abriram em direção aos céus e, pela primeira vez no fim de semana, vi a lua. Escondida entre as nuvens carregadas, surgia; estava cheia e fantástica! Permitia que víssemos melhor a praia, as árvores dos rochedos na penumbra, o seu reflexo na água onde estávamos. Isto, somado à chuva que já não era mais tão intensa nem tão gelada, fez com que nos sentíssemos, eu e Bernardo, donos de todas as melhores sensações da humanidade em todos os tempos. Não sei ao certo quanto tempo parei – e fui ninado pelo mar - para olhar a lua, mas certamente ali se condensou toda a eternidade.

Bernardo quis nadar para o fundo, mas eu só estava anestesiado, não louco; queria preservar, a partir daquele instante, o máximo de minha vida. Senti que a sensação única daquela noite devia ser carregada o máximo possível dentro de minha alma. Agora aqui está, finalmente perpetuada.

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