domingo, 31 de julho de 2011

Eu e o beija-flor

Havia um novo beija-flor nos fios em frente à varanda de minha casa. Seu voo era instável; logo voltava para seu porto seguro. Se manter no ar, por muito tempo, era uma ousadia a qual ainda não se sentia preparado. Próximo dele, outro beija-flor, maior, em incessante cantoria, parecia incentivar o menor, que alçava voo, ia um pouco pra direita, parava no ar, mas, sem energia e convicção, voltava para o fio.

Decidimos fazer um acordo com nossos amigos: eles nos agraciam com sua beleza, nos fascinam e nos acordam com sua cantoria em troca de uns poucos mililitros de alimento diário, em um bebedouro amarrado a uma de nossas janelas. Parece injusto, mas eles não dão a mínima para nossa presença; ao contrário, parecem extremamente felizes em seu próprio mundo de bater asas e cantar uns para os outros. Com isso, nos servimos de uma dose diária de felicidade. E quem disse que a natureza não é generosa?

Voltemos ao meio de tarde onde eu observava a presença deste novo habitante do mundo. Aos poucos, ganhava confiança e mudava de direção mais de uma vez antes de voltar ao fio; era como observar o bebê que dá os primeiros passos, tropeça, levanta e anda de novo até voltar a cair. Com o tempo, vai aprender a correr, será capaz de alcançar o pote de biscoitos em cima da mesa, segurar o choro, comer, pular, abraçar, amar, falar, reproduzir-se, contar, beber, brigar, sorrir... Até cair uma última vez. Assuntos que não são relevantes para aquele pequeno pássaro roxo, verde e de bico acentuado; naquele momento, o que lhe interessava era expandir seus horizontes, desprender-se do velho hábito de permanecer pousado e levantar voo, e alcançar sua liberdade através dele.

E eu? Ali estava, observando-o. O mundo existia lá fora, repleto de acontecimentos que não nos importavam. O beija-flor aprendia a voar e eu a vê-lo sem me preocupar com o exterior. Respiro fundo, levanto a cabeça, deixo-me atingir em cheio pelo sol, fecho os olhos e finalmente entendo: há um beija-flor aprendendo a voar em meu coração!

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Passagem

O ciclo acabou. Abruptamente, percebeu que o vínculo que tinha com o que se acostumara não mais existia. Olhava para trás e entendia que não havia mais como retornar. Enfim, conheceria o que há por trás daquele grande mistério que é a passagem. Um anjo incomum o conduzia.

- Mas eu não quero ir, é muito cedo! –, agoniava-se. – Ainda tenho muito a evoluir onde estava. Por favor, me deixe voltar!

- Não há o que temer, deixe de se preocupar. Além do mais, você perceberá que o lugar para onde vai é muito mais encantador do que imagina. E o mais importante: por vezes, você desejará jamais ter feito essa passagem, mas entenda que é o ciclo natural das coisas. Está claro?

A convicção e o olhar acalentador do anjo, ainda que sob uma aparência não imaginada, o acalmaram. Fechou os olhos e, ao abrir, viu-se em frente a um rio de água límpida, refletindo o feixe de luz indecifrável que vinha dos céus no meio da noite. O anjo apontava que aquele rio  o conduziria à luz que o levaria para o outro mundo.

Ele voltou a sentir medo, e também muito frio. Questionava o anjo sobre como era este mundo que seria agora seu lar.

- Não estou autorizado a responder essa pergunta. De qualquer forma, eu não saberia dar-lhe a resposta: cada um que parte para este lugar reage de forma diferente. O que, para muitos, seria o fim, torna-se a continuidade de uma vida que jamais se perdeu. É possível que se apaixone, assim como é possível que fique isolado e se prenda ao passado. O que você construiu até aqui lhe será mostrado lá, embora isso não seja essencial. O seu tempo é administrado somente por você, mas é importante que saiba que as mudanças ocorrem o tempo todo e as escolhas serão, finalmente, suas! Não é fascinante?

O anjo foi persuasivo. O medo se converteu em vigor e vontade e o frio passou no instante em que ele entrou no rio de água quente. Deitou, sorriu e se deixou levar pela leve correnteza daquele rio de esperança. O anjo caminhou à margem, seguindo-o até o ponto em que a água se desprendia da terra, em direção à luz daquele céu escuro. A passagem se completara; um ciclo se encerrava e outro começava.

- Tenha uma boa vida, meu amigo. -, disse o anjo em voz baixa.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Caridade?

Sentada em um dos bancos de um ponto de ônibus no centro da cidade, está essa senhora quase que totalmente cega – ao menos, é o que os óculos de lentes grossas e a bengala parecem atestar. Tão pequena que seus pés sequer tocam o chão, pendulando no ar em movimentos que só param no momento em que ela olha para o horizonte, inspira um pouco mais forte e diz:

- Uma balinha dez centavos. Dez balas é um real!

Aguarda um instante, esperando a manifestação de alguém e volta a abraçar seu pote de balas. Balas de péssima qualidade; todos sabem que o valor que pede por elas é abusivo. Usa de sua condição para faturar alto em cima de um produto de má qualidade; ninguém compra aquela bala por aquele valor, a menos que seja em razão da condição de quem a está vendendo, por caridade.

Faturar alto? Abusa? Vejam a condição dessa senhora e o quanto ela pede! Quanto ela poderia ganhar por dia vendendo balinhas de dez centavos? Ao contrário, ela é gentil: chama bala de “balinha” e faz a soma de dez unidades por nós. Abraça aquele pote como se fosse um filho e jamais o deixa vazio; em certo momento, quando ele está na metade, ela retira de uma mochila um pacote fechado de balas e o entope, acomodando cada uma delas como o faria com os pratos de cada uma de suas crianças em uma mesa pequena. Olha para o chão, mantendo os ouvidos atentos aos passos na rua; quando se intensificam, mira o horizonte, inspira e diz:

- Uma balinha dez centavos. Dez balas é um real!

E a multidão passa, observando-a. Quem tomará a iniciativa de comprar bala? Um a um, os que estão no ponto, esperando por seus ônibus, veem-na por algumas vezes e entrecruzam olhares. Quem será o primeiro? Talvez preferissem que ela tivesse somente um chapéu estendido à mão; bastaria jogar uma moeda. Participar do teatro de querer comprar uma bala parecia demais. Precisavam de um motivo.

Eis que um homem alto, vestindo sobretudo, óculos escuros, de barba por fazer e feição intimidadora, portando um grande envelope sob um dos braços, arremessa a bituca do cigarro e se aproxima da senhora, numa atitude de total indiferença ao que a platéia pensa. Não era, aliás, um personagem. Encosta a moeda na mão dela, que assustada, afasta-se num reflexo. (Será que já sofreu muito?) Com sua voz grossa e direta, ele diz:

- Vou querer dez.

- Quer escolher o sabor? –alivia-se.

- Não, pode ser qualquer uma – e volta os olhos em direção aos ônibus.

Ela retira um saquinho de papel de sua mochila e rapidamente coloca sua mercadoria nele. Mostra grande eficiência. Pôs uma a mais, provavelmente de propósito.

- Que Deus o abençoe – e estendeu a mão para receber a moeda.

Subitamente, guarda o pote em sua mochila, levanta e parte, em passos lentos, leves e cheios de confiança. Não se despede, já que estaria ali mesmo outro dia e, quem sabe, possa cativar cada um daqueles personagens que dividiram essa experiência naquele frio fim de tarde. Os atores poderão ser outros, as interpretações igualmente, mas a lição se reforça. E ela tinha muito a ensinar.

domingo, 24 de julho de 2011

E a vida não é engraçada?

“E a vida não é engraçada?”, era o lema da vida de Romeu, um senhor de 72 anos, divorciado sete vezes, apaixonado outras quinze (não que ele contasse cada uma delas, mas esse número era o aproximado). Filho de um grande acionista, deixara todo o seu capital em ações de baixo risco, de modo a trabalhar pouco e à distância e desfrutar de outros prazeres; essa renda o permitia desfrutar de muitos. Pai de oito filhos, não via o primogênito há pelo menos 12 anos quando soube de sua morte, que sequer arruinou sua ida a Milão.

- A vida acaba para todos nós, cedo ou tarde. A dele foi cedo. Que vá em paz, Heitor – homenagem ao maestro brasileiro, a primeira de suas paixões musicais -, mas não atrapalhe a vida desse velho que ainda tem sede por ela! – e abraçou Francesca, sua namorada italiana, que começara a compreender o português e a insensibilidade de seu companheiro.

Trinta anos mais jovem, habituada a festas infindáveis e jamais compromissada, acreditava que com o declínio de sua beleza viria o amor verdadeiro, e este só era possível com uma maturidade masculina semelhante, para ela só existente em homens bem mais velhos. O desdém de seu parceiro com a morte de um filho fizera-a compreender, no entanto, que a maturidade tem múltiplas facetas (ou não tem nenhuma). Ao fim da viagem, teve uma breve conversa com Romeu, onde relatou seu desencantamento e se mostrou disposta a interromper a história de ambos ali mesmo, ficando em seu país natal.

- Está bem – disse ele -, obrigado pelos momentos que vivemos. Mas você sabe que, vez ou outra, retorno para cá em negócios. Posso visitá-la?

- Evidente -, e arreganhou os dentes, em seu sorriso mais falso e peremptório. Aquele homem que sequer fora ao enterro do próprio filho jamais retornaria a vê-la, a menos para satisfazer suas necessidades mais prementes. Assim, demonstrar toda a sua desilusão em um sorriso irônico era a forma mais rápida e direta de encerrar o assunto ali mesmo.

Dezenove anos se passaram sem nenhum contato até que, no fim de uma bela tarde de primavera, um senhor já bastante curvado bateu à porta de Francesca, que não o reconheceu à primeira vista de sua varanda e o atendeu, lá de cima.

- Buon pomeriggio, Francesca! -, disse o senhor, olhando para cima sob a aba de seu chapéu escuro, acenando com a mão esquerda esticada, exibindo a ponta do indicador torto em direção ao polegar, conseqüência da vez em que atingiu a própria mão com um martelo enquanto pendurava o quadro da avó de Francesca na sala de estar.

- Costumamos pagar para alguém fazer isso lá no Brasil -, disse enquanto mantinha a mão entre as pernas, que comprimiam-se uma na outra, em sinal de dor.

- Pode-se pagar para alguém fazer qualquer coisa em qualquer lugar do mundo, querido, mas isso não seria uma vida a dois. O dinheiro mediaria nossas relações -, disse simpaticamente, acariciando sua omoplata, enquanto pegava o telefone com a outra mão para chamar o médico.

O coração de Francesca se manteve calmo, já que ela suspeitava dos motivos da visita de Romeu. Recebeu-o de bom grado e com o mesmo sorriso de seu último contato, que ganhava feições diferentes por conta da idade; Romeu enxergava pouco, e o sorriso que lhe foi dado sequer foi visto. Parecia impossível que aquele senhor tivesse qualquer necessidade física premente.

Sob o olhar da avó que fora pendurada dezenove anos atrás, Romeu explicava que estava na Itália em uma viagem com sua filha mais nova. Partilhou a maior parte de suas ações entre os filhos e mantinha para si o suficiente para manter-se em uma saúde relativamente estável e pagar a jovens estudantes para lerem os livros de sua estante, negligenciados ao longo de tantos anos. Francesca apresentara-o ao Decamerão e ele entendeu, a partir dele, que o ser humano, em essência, não mudara muito ao longo dos séculos. Mas qual era a sua essência?

- Eu casei, Romeu – interrompendo-o no meio de seu relato emocionado d’A Odisseia, última obra lida por um dos estudantes -, adotei um filho que está na universidade e já enviuvei. Me tornei uma novelista discreta e estou doente. Não que isso te importe, mas desde que me isolei do mundo, só pude lamentar através de meus personagens, nunca como eu mesma.

Mozart embalava o ambiente alaranjado. O pôr-do-sol atingia em cheio o rosto de Francesca, exibindo sua pálida face, destacando o louro de seus cabelos e o azul de seus olhos. Romeu fitou-a por uns instantes.

- Pois talvez isso te importe: seis de minhas ex-esposas faleceram em nove anos. Só estive no enterro da última por culpa do acaso, e não vi nada naquele caixão que mostrasse que eu havia um dia estado com aquela mulher. Em dezenove anos, sete pessoas que amei se foram e eu não senti que perdi nenhuma delas. Senti todo tipo de amor nessa vida, mas não senti a dor da perda. Já sabia de sua doença antes de vir até aqui, minha querida. Por isso, venho para lhe propor que case comigo e me permita cuidar de você no pouco tempo que tenha. Está tudo arranjado, basta você me dizer sim.

Casaram-se no dia seguinte. Romeu partiu três meses depois; manter-se em saúde relativamente estável maquiou sua real condição. Francesca não compareceu ao seu enterro, seu filho estava se formando. Enviou à filha de  Romeu um cartão, que gostaria que fosse posto junto à lápide; dizia somente “Grazie. Arrivederci”.

E a vida não é engraçada?

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Idiossincrasia

- Cara, tudo o que eu queria era poder estar com ela, nem que seja uma única vez. – dizia o jovem ao seu amigo de balcão. Não sabia seu nome, e isso o fez confiar nele ainda mais.  A bartender, incrédula, olhava para aquele homem despenteado, de gravata e botões da camisa soltos. Era nova ali e presenciava a cena pela primeira vez, consolando-se com a imaginação de que a rotina lhe mostraria o quanto isso era comum.

- Porra, que seja uma única vez mesmo! - brandiu o homem com um copo de Whisky na mão. – Faça o que tiver de ser feito nessa única vez, e terá a melhor lembrança de sua vida. Mantenha contato e a beleza da experiência irá pro inferno junto com o monte de desentendimentos  – dizia, mostrando o anelar esquerdo marcado em branco pela aliança recém-arrancada.

O casal sentado à mesa ouvia tudo muito atentamente. Estavam separados há um tempo e resolveram tentar uma reconciliação naquela noite; ambos sabiam da inocuidade daquilo, mas estavam acostumados um ao outro. Saíram pelo mundo e perceberam o quanto era trabalhoso cativar um coração novo com sentimentos que envelheceram. Também era difícil serem cativados; haviam se enrijecido demais para permitir que alguém entrasse em suas vidas facilmente. Olharam-se em tom de questionamento: “que lembranças guardamos?”

A garçonete chegou junto à mesa e, reconhecendo-os:

- Que surpresa boa! Há quanto tempo não vinham aqui? Até comentávamos de vocês às vezes, imaginando o que teria acontecido. Enfim, é ótimo saber que ainda gostam deste lugar. Vão querer o de sempre?

Ele balançou a cabeça em tom afirmativo enquanto ela olhava-o, de modo austero. Nesse meio tempo, o jovem e o recém-divorciado desentenderam-se: o primeiro idealizava o amor inextinguível de uma noite e o segundo o retorquia, bradando que a noite do amor ideal, uma vez conquistada, era o ápice da relação. Tudo o que dali se seguia era comodismo e uma patética tentativa de repetir o que já aconteceu...

- E isso é impossível, meu caro. Esteja com ela até o ápice e depois vá embora!

Todo o local foi tomado pelo silêncio. A mão que segurava o copo de vinho parou no ar, foi à boca da mulher que estava à mesa e, ainda no ar, refletiu aos homens no balcão a face feminina que disse:

- Já atingimos nosso ápice uma vez. Adeus.

Levantou e foi embora. O homem olhou-a sair pela porta e viu, pela vidraça, atravessar a avenida em tranqüilos passos. Acenou cordialmente para o senhor que filosofara sobre o ápice da relação e pediu à garçonete:

- Cancele a parte dela. Mas estou cheio de fome, capriche na minha! – E sorriu para ela, que retribuiu o gesto, exibindo a cintilação de seus pequenos olhos. Ele percebeu o quanto poderia ser cativado por isso.

O jovem e o divorciado pediram outra rodada e questionaram a bartender sobre o que ela pensava do amor. Na mesma noite, chorou nos ombros de seu namorado e pediu demissão.