domingo, 24 de julho de 2011

E a vida não é engraçada?

“E a vida não é engraçada?”, era o lema da vida de Romeu, um senhor de 72 anos, divorciado sete vezes, apaixonado outras quinze (não que ele contasse cada uma delas, mas esse número era o aproximado). Filho de um grande acionista, deixara todo o seu capital em ações de baixo risco, de modo a trabalhar pouco e à distância e desfrutar de outros prazeres; essa renda o permitia desfrutar de muitos. Pai de oito filhos, não via o primogênito há pelo menos 12 anos quando soube de sua morte, que sequer arruinou sua ida a Milão.

- A vida acaba para todos nós, cedo ou tarde. A dele foi cedo. Que vá em paz, Heitor – homenagem ao maestro brasileiro, a primeira de suas paixões musicais -, mas não atrapalhe a vida desse velho que ainda tem sede por ela! – e abraçou Francesca, sua namorada italiana, que começara a compreender o português e a insensibilidade de seu companheiro.

Trinta anos mais jovem, habituada a festas infindáveis e jamais compromissada, acreditava que com o declínio de sua beleza viria o amor verdadeiro, e este só era possível com uma maturidade masculina semelhante, para ela só existente em homens bem mais velhos. O desdém de seu parceiro com a morte de um filho fizera-a compreender, no entanto, que a maturidade tem múltiplas facetas (ou não tem nenhuma). Ao fim da viagem, teve uma breve conversa com Romeu, onde relatou seu desencantamento e se mostrou disposta a interromper a história de ambos ali mesmo, ficando em seu país natal.

- Está bem – disse ele -, obrigado pelos momentos que vivemos. Mas você sabe que, vez ou outra, retorno para cá em negócios. Posso visitá-la?

- Evidente -, e arreganhou os dentes, em seu sorriso mais falso e peremptório. Aquele homem que sequer fora ao enterro do próprio filho jamais retornaria a vê-la, a menos para satisfazer suas necessidades mais prementes. Assim, demonstrar toda a sua desilusão em um sorriso irônico era a forma mais rápida e direta de encerrar o assunto ali mesmo.

Dezenove anos se passaram sem nenhum contato até que, no fim de uma bela tarde de primavera, um senhor já bastante curvado bateu à porta de Francesca, que não o reconheceu à primeira vista de sua varanda e o atendeu, lá de cima.

- Buon pomeriggio, Francesca! -, disse o senhor, olhando para cima sob a aba de seu chapéu escuro, acenando com a mão esquerda esticada, exibindo a ponta do indicador torto em direção ao polegar, conseqüência da vez em que atingiu a própria mão com um martelo enquanto pendurava o quadro da avó de Francesca na sala de estar.

- Costumamos pagar para alguém fazer isso lá no Brasil -, disse enquanto mantinha a mão entre as pernas, que comprimiam-se uma na outra, em sinal de dor.

- Pode-se pagar para alguém fazer qualquer coisa em qualquer lugar do mundo, querido, mas isso não seria uma vida a dois. O dinheiro mediaria nossas relações -, disse simpaticamente, acariciando sua omoplata, enquanto pegava o telefone com a outra mão para chamar o médico.

O coração de Francesca se manteve calmo, já que ela suspeitava dos motivos da visita de Romeu. Recebeu-o de bom grado e com o mesmo sorriso de seu último contato, que ganhava feições diferentes por conta da idade; Romeu enxergava pouco, e o sorriso que lhe foi dado sequer foi visto. Parecia impossível que aquele senhor tivesse qualquer necessidade física premente.

Sob o olhar da avó que fora pendurada dezenove anos atrás, Romeu explicava que estava na Itália em uma viagem com sua filha mais nova. Partilhou a maior parte de suas ações entre os filhos e mantinha para si o suficiente para manter-se em uma saúde relativamente estável e pagar a jovens estudantes para lerem os livros de sua estante, negligenciados ao longo de tantos anos. Francesca apresentara-o ao Decamerão e ele entendeu, a partir dele, que o ser humano, em essência, não mudara muito ao longo dos séculos. Mas qual era a sua essência?

- Eu casei, Romeu – interrompendo-o no meio de seu relato emocionado d’A Odisseia, última obra lida por um dos estudantes -, adotei um filho que está na universidade e já enviuvei. Me tornei uma novelista discreta e estou doente. Não que isso te importe, mas desde que me isolei do mundo, só pude lamentar através de meus personagens, nunca como eu mesma.

Mozart embalava o ambiente alaranjado. O pôr-do-sol atingia em cheio o rosto de Francesca, exibindo sua pálida face, destacando o louro de seus cabelos e o azul de seus olhos. Romeu fitou-a por uns instantes.

- Pois talvez isso te importe: seis de minhas ex-esposas faleceram em nove anos. Só estive no enterro da última por culpa do acaso, e não vi nada naquele caixão que mostrasse que eu havia um dia estado com aquela mulher. Em dezenove anos, sete pessoas que amei se foram e eu não senti que perdi nenhuma delas. Senti todo tipo de amor nessa vida, mas não senti a dor da perda. Já sabia de sua doença antes de vir até aqui, minha querida. Por isso, venho para lhe propor que case comigo e me permita cuidar de você no pouco tempo que tenha. Está tudo arranjado, basta você me dizer sim.

Casaram-se no dia seguinte. Romeu partiu três meses depois; manter-se em saúde relativamente estável maquiou sua real condição. Francesca não compareceu ao seu enterro, seu filho estava se formando. Enviou à filha de  Romeu um cartão, que gostaria que fosse posto junto à lápide; dizia somente “Grazie. Arrivederci”.

E a vida não é engraçada?

Um comentário:

  1. Muito bom o texto, bem ao estilo do primeiro...Realista!!!Denso, porém sem ser pesado ou amargo...

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