terça-feira, 26 de julho de 2011

Caridade?

Sentada em um dos bancos de um ponto de ônibus no centro da cidade, está essa senhora quase que totalmente cega – ao menos, é o que os óculos de lentes grossas e a bengala parecem atestar. Tão pequena que seus pés sequer tocam o chão, pendulando no ar em movimentos que só param no momento em que ela olha para o horizonte, inspira um pouco mais forte e diz:

- Uma balinha dez centavos. Dez balas é um real!

Aguarda um instante, esperando a manifestação de alguém e volta a abraçar seu pote de balas. Balas de péssima qualidade; todos sabem que o valor que pede por elas é abusivo. Usa de sua condição para faturar alto em cima de um produto de má qualidade; ninguém compra aquela bala por aquele valor, a menos que seja em razão da condição de quem a está vendendo, por caridade.

Faturar alto? Abusa? Vejam a condição dessa senhora e o quanto ela pede! Quanto ela poderia ganhar por dia vendendo balinhas de dez centavos? Ao contrário, ela é gentil: chama bala de “balinha” e faz a soma de dez unidades por nós. Abraça aquele pote como se fosse um filho e jamais o deixa vazio; em certo momento, quando ele está na metade, ela retira de uma mochila um pacote fechado de balas e o entope, acomodando cada uma delas como o faria com os pratos de cada uma de suas crianças em uma mesa pequena. Olha para o chão, mantendo os ouvidos atentos aos passos na rua; quando se intensificam, mira o horizonte, inspira e diz:

- Uma balinha dez centavos. Dez balas é um real!

E a multidão passa, observando-a. Quem tomará a iniciativa de comprar bala? Um a um, os que estão no ponto, esperando por seus ônibus, veem-na por algumas vezes e entrecruzam olhares. Quem será o primeiro? Talvez preferissem que ela tivesse somente um chapéu estendido à mão; bastaria jogar uma moeda. Participar do teatro de querer comprar uma bala parecia demais. Precisavam de um motivo.

Eis que um homem alto, vestindo sobretudo, óculos escuros, de barba por fazer e feição intimidadora, portando um grande envelope sob um dos braços, arremessa a bituca do cigarro e se aproxima da senhora, numa atitude de total indiferença ao que a platéia pensa. Não era, aliás, um personagem. Encosta a moeda na mão dela, que assustada, afasta-se num reflexo. (Será que já sofreu muito?) Com sua voz grossa e direta, ele diz:

- Vou querer dez.

- Quer escolher o sabor? –alivia-se.

- Não, pode ser qualquer uma – e volta os olhos em direção aos ônibus.

Ela retira um saquinho de papel de sua mochila e rapidamente coloca sua mercadoria nele. Mostra grande eficiência. Pôs uma a mais, provavelmente de propósito.

- Que Deus o abençoe – e estendeu a mão para receber a moeda.

Subitamente, guarda o pote em sua mochila, levanta e parte, em passos lentos, leves e cheios de confiança. Não se despede, já que estaria ali mesmo outro dia e, quem sabe, possa cativar cada um daqueles personagens que dividiram essa experiência naquele frio fim de tarde. Os atores poderão ser outros, as interpretações igualmente, mas a lição se reforça. E ela tinha muito a ensinar.

3 comentários:

  1. Que lindo...Raul!Tão lirico!!!Fiquei sem saber o que pensar e tão confusa quanto aquelas pessoas no ponto do ônibus, com a sensação que algo aconteceu e que algo de precioso a velhinha deixou para nós...Tão precioso e tangível, mas o que????

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  2. Mistério!!!

    Adorei Raul!! Parabéns!

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  3. Belíssimo desenrolar... lição bem dada... sem precisar da explicação... personagens falam por si... quase pude vê-los à minha frente... seguindo você aqui e quando quiser passe para visitar o meu blog também... ficaria honrada... http://noitesdeoutrosdias1.blogspot.com/

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