sábado, 27 de agosto de 2011

Crônica de uma madrugada - Parte I

“Ah, foda-se!”, foi o primeiro (e único) pensamento de Rodolfo ao ser expulso daquele bar às 3 da madrugada, por flertar com uma mulher casada e, com isso, se meter em uma briga com o marido – fraco, mas cliente antigo e cheio de privilégios. Entrou no bar uma quadra abaixo e reconheceu a pouca iluminação da maior parte do ambiente contrastando com a luz forte à sua direita, sobre a prateleira de bebidas organizadas em ordem alfabética; à sua esquerda, uma mesa de bilhar mal cuidada e com duas bolas 8. À sua frente, na parede ao lado do banheiro, um antigo calendário pornográfico. A folha era ainda a de Julho, mês de inverno, e uma loira vestindo Ushanka preenchia a página já manchada pelo tempo. Uma boa motivação para ir ao banheiro.

Algo dizia aos seus sentidos que já tinha estado naquele lugar. A porcelana quebrada, a luz instável - mais tempo apagada que acesa -, a caixa de descarga acionada por cordinha com a inscrição “Letícia, eu te amo”, a foto de John Lennon colada no teto, o modo abafado como o som das risadas vindas de fora entravam, o espelho quebrado; tudo lhe era familiar. Um vestido vermelho, deixando escapar pernas que usavam uma meia-calça escura, veio à mente enquanto mijava. Déjà-vu? A lembrança era vívida demais para tal. Olha-se no espelho enquanto lava as mãos.

- Seu bêbado louco. – E a luz se apaga para não mais acender. Tateia pelas paredes, reconhecendo o aquecimento em um determinado ponto. Na certa, deve existir um grande forno do outro lado; “hum... mas lá não está tão quente quanto aqui”, sua mente sussurra e sorri, em voz feminina. Uma mordida em sua orelha. O vestido, que desnuda ombros brancos e de pele delicada, volta a aparecer em um flash; ele se apóia mais forte na parede aquecida, contrai a mão restante, sentindo a poliamida que cobre pernas grossas, fazendo-o ter uma ereção. Respira forte, fecha os olhos e se entrega à sensação: sente o cheiro de um perfume, que contrasta a suavidade de um aroma levemente doce com a embriaguez provocada por um bom porre de vinho. Um perfume masculino numa pele feminina: um gracejo que mostra que qualquer essência cheira melhor num corpo de mulher.

Sai do banheiro e senta-se em uma das poucas cadeiras restantes, próximo à rua e de frente para a porta de onde acabara de sair. Vê as pessoas entrando e saindo e, submerso em seu entorpecimento, se diverte em pensar nas razões de cada uma delas. Pede uma garrafa de vinho, mas lembra-se, na metade dela, que já está sem dinheiro. Levanta-se, bebe um pouco, devolve a garrafa à mesa, olha para o homem no balcão com um pano branco em seu ombro esquerdo lavando copos, franze a sobrancelha, estende as palmas das mãos e encolhe os ombros.

- De novo, seu filho da puta?! -, grita o dono do bar, que fecha a torneira e avança furiosamente contra o rapaz. Pega-o pelo colarinho e puxa para perto de si com tanta força, de modo a deixar claro que ele não sentirá a menor piedade por aquele pobre rapaz bêbado, incapaz sequer de assimilar um soco e permanecer de pé. Percebe também que poderia sequer lembrar o que aconteceu; bater nele poderia ser inútil e desagradável de se ver. Atira-o contra a parede próxima à saída e joga, brutalmente, a jaqueta de couro presa à cadeira onde Rodolfo sentava-se. – Se voltar, vou garantir que seja a última vez.

Rodolfo não tem força para se mover. Joga a cabeça para trás até encostá-la na parede e olha para o teto. O mundo se contorce. Gira a cabeça para enxergar a saída, percebe o movimento na rua que fervilha em plena madrugada e imagina o quanto ainda podia se divertir lá fora. Espera o dono se afastar, volta seus olhos para a mesa e avança em direção a ela. Sorri o sorriso dos insolentes e diz ao dono:

- Bem, nesse caso, a garrafa vem comigo.

Um copo voa e se estilhaça na mesa, cortando o braço do rapaz, que percebeu não haver meios de escapar daquela luta. O bêbado pensou ser um tremendo provocador; ou o dono daquele bar tinha o pavio muito curto; de qualquer forma, ambos pareciam gostar de uma boa briga. Contudo, Rodolfo tinha fome, estava cansado e tonto, o cheiro de sangue era forte e um mal-estar súbito o atingiu, diante da iminência de ter seu corpo atirado na rua. Apoiou-se com a mão esquerda na mesa e cerrou o punho da direita, com o coração disparado e olhar turvo, esperando pela surra.

(Continua)

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Nota do autor: Faço, neste blog, um novo experimento: uma história dividida em partes. Como sempre, vem a ideia de um tema e em seguida a prática - a abstração para a objetivação. Mas o processo criativo não é algo que se preveja nem se molde; os dedos e palavras fluem conforme o rio de nossas mentes. Dessa forma, este é um conto que está em andamento, e, para não publicá-lo de uma vez, num tamanho despropositado ao conceito deste espaço e à paciência de muitos leitores, divido-o em doses homeopáticas, aguardando comentários. Mesmo que seja para o caso de dar uma mudança de rumos ao que já está feito.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Uma dinâmica e duas Rebecas

Pablo acordou cedo, vestiu sua melhor roupa, encarou frio e trânsito rumo a uma entrevista de emprego. Nunca teve muita paciência, nem concorda com as tais dinâmicas; mas bem, é assim que contratam hoje em dia, e ele não pode fazer muito além de se submeter.

Atravessa a cidade esmagado no transporte público, mas de bom humor. Afinal, havia boa música em seus fones de ouvido e ele estava otimista em relação ao trabalho: era simples, temporário, ficava perto de onde era realmente importante estar. Bastava para ele dispender de 6 horas diárias, seis vezes por semana. Parecia um bom negócio.

Entra na empresa e é recebido com um sorriso pela selecionadora, chamada Rebeca. Lembrou-se da época que fez teatro e da Rebeca que quase arrancou sua virgindade. Ela atirava-se e ele, extremamente tímido e ingênuo, não entendia suas indiretas. Até que um dia ela o agarrou e o levou para o camarim, sentou-se na mesa, abaixou a calcinha e ergueu a saia; Pablo concentrou-se demais nos beijos e, com isso, logo ouviu vozes que se aproximavam. Ele estava atordoado, de pernas trêmulas, mas achou ter encenado bem um disfarce. Os sorrisos maliciosos que lhe eram dirigidos, porém, logo o demoveram da ideia. Esperava o primeiro e único amor, e o que Rebeca tentava fazer com ele lhe parecia imoral, sem sentido. Nunca mais se encontraram.

De qualquer forma, lá estava outra Rebeca, baixinha e ruiva, tal como a outra. Pablo retirou a folha de cadastro e agradeceu com um sorriso, que lhe foi retribuído. Ele riu do seu eu adolescente, como muitos fazemos quando pensamos no puritanismo que tínhamos em nossa essência (muitas vezes um riso melancólico). Será que aquela Rebeca iria querê-lo, agora que já era outro?

A folha de cadastro vinha com um pequeno teste anexo; “uma ode à ignorância”, ele pensou. Preencheu rapidamente e aguardou os outros candidatos terminarem. Temia que a demora o impacientasse e ele expusesse maus hábitos, como tremer a perna e roer a unha. A imagem numa dinâmica deve ser impecável; inclusive nossos defeitos devem ser, de alguma forma, úteis ao trabalho. Muita gente se atrasou, e ele se perguntou se Rebeca gravaria aqueles rostos e descontaria pontos. Parecia ser o mais justo a se fazer, mas nada indicava que o seria. Bravejava e estava ansioso, mas tinha que esperar.

Todos terminaram e a selecionadora demandou mais alguns minutos, para corrigir todos os testes. Pablo olhava em volta, e se achava em perfeitas condições de competir e ganhar de todos que ali estavam, não porque os desmerecia, mas porque estava, acima de tudo, confiante.

Rebeca enfim terminou, e resolveu falar sobre a “oportunidade”. Ele achou estranho ela não falar emprego, vaga, trabalho, etc. Se ela qualificava assim o trabalho, ou estava supervalorizando-o, ou realmente era algo excepcional. Pablo já conhecia o mercado, e sabia que logo viria um problema. Ela falava da empresa – uma tal de BRT -, que estava no mercado há 10 anos e era uma das maiores e mais generosas, com auxílios excepcionais, grande oportunidade de crescimento a partir de 4 meses de trabalho e coisas que ele já não mais se importava; Pablo entendeu que todos ali seriam explorados. Quando ela falou do desconto do vale-transporte e disse que era de “6% sobre o salário que vou falar daqui a pouco” e tratou de voltar a elogiar a empresa, ele já se achou numa perda de tempo. Mas não seria grosseiro enquanto não ouvisse o valor.
    
       -   O salário que oferecemos para o cargo é de três-dois-cinco -, ela disse.


       Pablo percebeu: ela sabia que era uma exploração. Dizer os números um a um e não juntá-los num único número cardinal era um interessante estratagema para não mostrar quão baixo era o salário. Uma moça prontamente se levantou e disse:
    
       -   Desculpe, mas esse valor não me interessa.
    
       -   Bem, então você e quem mais pensar a mesma coisa pode sair -, respondeu Rebeca.

Cerca de oito pessoas levantaram, e o processo seguiu, com os que sobraram disputando ferozmente aquela vaga que, se para outros não era nada, para eles talvez fosse tudo. Uma apresentação em público, uma separação em dois grupos, onde um tentaria ganhar do outro numa argumentação, um vídeo corporativo que mostrava a grandeza da empresa e o quão grande os candidatos podiam ser se permanecessem fiéis àqueles que estão dando aquela oportunidade. Em seguida, uma pausa para um lanche, uma ida ao banheiro e um merecido descanso para Rebeca. Ao fim do dia, alguns daqueles estariam sorrindo por terem conseguido agarrar aquela oportunidade. Mas não Pablo: ele não queria ser novamente abusado por uma Rebeca e estava dentro do grupo dos oito.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Foto

Estava diante da mais bela imagem, jamais captada antes. Seria a lente de uma câmera capaz de fotografar o sentimento por trás daquele rosto? Seria capaz de captar o calor e o ofegar daquele corpo timidamente retraído embaixo do lençol? Dizem que a grande fotografia de pessoas é a que transpõe ao observador o sentimento da pessoa fotografada. Parece evidente que a totalidade das emoções não pode ser retratada, ainda mais estas sendo tão conectadas ao contexto; quanto mais próximo for, entretanto, melhor a foto, e mais tocados seremos.

Aquela imagem não fora captada por nenhuma outra lente senão a ideal: os olhos. Olhos que são parte daquela grande máquina repleta de sentimentos e interações, que distorcem a imagem que é vista. Isso não é, de modo algum, uma coisa ruim: e se tudo o que queremos e precisamos são estas distorções? O céu se torna mais azul que o normal, o brilho do olhar é mais intenso, o sorrir da criança é ainda mais puro, a piada é mais engraçada, o respirar nos torna mais vivos, o banho de chuva sublima corpo e alma, o acariciar um animal nos integra à natureza, a música arrepia o corpo... Que o mundo se distorça!

A máquina fixa sua lente no rosto, que reage aos olhares. A máquina fecha os olhos e mentaliza a imagem que acabara de captar; aquela era a que seria guardada pelo resto da vida. Bastaria um fechar de olhos, um segundo de pensamento e lá está ela, perfeita em dimensão, contexto, cenário, luz e sentimento. A espinha que salta à testa está ali somente para dizer à máquina: “sim, ela é real. Guarde-a!”. A máquina sorri e a imagem retribui com um olhar brilhante, mas de dúvida. Ela então ouve:

- Sabe, o que estou vendo agora é melhor que qualquer foto que poderiam tirar de você.

         - E por que não tirou uma?

A máquina deixou de sê-la. Refletiu sobre a pergunta.

- Uma foto não entenderia o que vi.

E nem as palavras. Falar do calor que a aqueceu de repente, dos olhos que lacrimejaram e da boca que sorriu é tratar do que aquela ex-máquina sentiu em seus sintomas, não em essência. Ela viu, sentiu, captou e guardou. E, infelizmente para nós, somente ela é capaz de ver e sentir novamente, num simples cerrar de olhos.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Claire de Lune

O celular toca. É ela, me pedindo para olhar a lua desta noite. “Está linda!”, li, enquanto tentava procurá-la sobre minha cabeça em meio ao centro da cidade. Tive que prever com certa antecedência o tempo em que poderia olhar para cima, de modo a não trombar com ninguém enquanto andava. Tarefa difícil, se tratando daquele mar de gente. E a lua não estava lá.

Adentro o subterrâneo do metrô. Nos fones, Beethoven e sua sonata dedicada ao luar; na mente, a imagem da lua, que ela me falara com tanto entusiasmo. Tínhamos visto-a poucas horas atrás, quando invertemos os papéis: eu voltei os olhos aos céus e apontei em direção a ela; “Veja, que linda!”. Será que está do mesmo jeito ou ficou ainda mais bela? Ou será que o olhar entorpecido pela magia de nosso encontro fez com que ela a visse mais bonita? As estações passam, a sonata chega ao seu terceiro (e mais espetacular) movimento, e ainda estou preso ao subterrâneo, com o sonho de ter todo o céu a meu dispor, e a lua... Ah, ela seria toda minha!

No caminho entre a estação e minha casa, nada dela. (“Por que ela é capaz de vê-la e eu não? Há algo errado comigo ou com as casas e coisas ao meu redor?”). Chopin embala meu trajeto com seu segundo noturno, em passos flutuantes. O corpo está arrepiado, apesar de sentir calor; o calor que nos move ao desconhecido, ao salto de fé, a conceder uma chance ao novo, se arriscar no inabitável. O céu está limpo, o vento bate em meu rosto e as notas do piano formam um mosaico do rosto dela em minha alucinação. (“Por que não aparece, lua?”). Pego o telefone.

- Não vejo a lua!

- Que pena. Ela está minguante, tal como a vimos mais cedo. Mas está amarelada, com um brilho intenso ao seu redor; um sorriso dourado!

Era a imagem perfeita para aquele fim de noite. Vagueio pelas janelas de minha casa em busca dela; não podia suportar a ideia de que o mundo era capaz de vê-la e eu estar renegado a somente ouvir dizer sobre seu formato, com o que se assemelha,  porque muda o tempo todo e, principalmente, como nos sentimos a respeito de tamanha instabilidade.

Não a encontrava. 

Restava-me, então, a resignação de algo que parecia destinado aos outros; só poderia conhecê-la através das fotos, imagens e canções dedicatórias. Debussy, com sua Claire de Lune, embala minha melancolia. Até o momento em que a gata negra sobe na janela, mia em minha direção e eu atendo seu chamado. À sua direita, um clarão dourado atrás das casas. Recosto-me na janela e percebo, de soslaio, a presença da gata sentando-se ao meu lado. E surgem os violinos, que glorificam minha visão: a lua está ali, atrás daquelas pequenas construções. Não vejo seu formato, não sei se é como me foi dito; eu poderia vê-la diferente – poderia ser igualmente bela, no entanto. Mas o brilho que irradia, o modo como me aquece e a paz que me traz são as únicas coisas que realmente importam neste momento.