Toda vez que vejo esta roda gigante, me lembro da
ferrugem de suas grades que me tornou o homem mais feliz do mundo naquela fria
noite de inverno de 63. Ou 64, não me
lembro; os invernos foram todos gelados no começo daquela década. Mamãe dizia
até que nunca tinha ficado tão frio, o que é exatamente a mesma coisa que
repito todo ano. Não sei se realmente está ficando mais frio ou se estou mais
sensível, tal como minha mãe.
Como eu ansiava pegar a mão de Maria! Jamais tomei
qualquer iniciativa a respeito pois o medo de ser grosseiro era ainda maior.
Aquela mão parecia tão pequenina e sensível ao olhar que eu tinha medo de
machucá-la com o mais leve toque. Por isso eu desejava tanto que ela decidisse encaixar
sua mão na minha e recorria aos subterfúgios mais patéticos, a maioria deles
sem sucesso. Antes da roda gigante, a última tentativa foi atravessar a rua na
parte onde estava mais encharcada, e estendi minha mão para ajudá-la a
pular. Ela, sempre muito esperta e difícil, pegou-me pelo antebraço e me
arrastou para o lugar onde poderíamos atravessar confortavelmente.
A roda gigante, porém, parecia infalível: eu sempre
tive medo de altura, e essa era a oportunidade perfeita para torná-lo maior que
meu receio e me fazer pegar em sua mão. Convidei-a na terça para ir ao parque no sábado e me preparei para encarar o medo nos dias restantes, sofrendo,
inclusive, de uma insônia crônica causada pela troca de lugar na beliche com
meu irmão, que deixou claro que nunca mais devolveria a parte de baixo. Quando
se é jovem e impulsivo, aceita-se qualquer coisa sem pensar num futuro que não
seja o, no máximo, da próxima semana.
Nada disso importava, contanto que eu fosse capaz de controlar meu medo e não apertar muito forte sua mãozinha. E o dia gélido de
sábado convergia ainda mais com meu plano; seria não só uma forma de vencer meu
medo, como também de aquecermos nossos corpos um no outro. Só não estava nos
meus planos ela surgir de sobretudo de couro e aquela grossa luva de lã branca.
Como qualquer parque que vai às cidadezinhas sazonalmente,
o que veio ficou na praça da Igreja onde nos casamos 6 anos depois, quando
finalmente me sentia à vontade de expressar meu grande amor e pegar na mão de
Maria em público. Eu era, definitivamente, um homem de medos. E muitos eu perdi
por ela.
Lá estavam a barraca de maçã do amor, a pescaria, as
argolas, a boca do palhaço, o tiro ao pato, o carrossel, o mágico, o
algodão-doce, os balões...tudo no caminho da imponente roda gigante. Era o
primeiro ano que vinha à nossa cidade e era motivo de grande adoração por
todos. Alguns diziam que do topo era possível até ver o mar, desconhecido para
a maioria de nós. Mas, como podiam ver o mar de noite? “Ele reflete a luz da
lua e conseguimos ver a onda gigante acabar com o reflexo”. Depois soubemos ser
uma daquelas fantásticas histórias inventadas por uma criança replicada por
adultos desejosos por fantasias do tipo.
A fila era imensa e o ranger de cada engrenagem
daquela imensa roda serviu para aumentar o nosso medo a cada volta. 7 voltas
que ela deu até chegar a nossa vez, quando o medo se converteu em nervosismo.
Não sabia se teria coragem de pôr em prática meu plano, que a cada minuto
parecia mais estúpido. Mas lá estávamos e não podíamos simplesmente ir embora
de repente. Escolhi apertar com força minhas próprias mãos, caso eu sentisse
medo. A roda girou e uma brisa gelada subiu pela minha nuca e por um instante
esqueci a presença de Maria. Fechei os olhos. “Veja, que lindo aqui de cima!”,
ela me disse e eu não consegui responder, muito menos abrir meus olhos. Senti a
roda descer.
“Você está bem, Heitor?”, ela me perguntou, com a mão
sobre meus ombros. Esta pergunta me soou distante, pois eu só conseguia ouvir o
ranger das engrenagens e me arrepiar por inteiro com a brisa que se
intensificava quanto mais a roda subia. “Segure nas barras, você vai se sentir
mais seguro”, o que fiz e me fez ficar com as mãos ainda mais geladas; nada bom
para alguém tão assustado. Coloquei-as no bolso e me encolhi. Senti a
intensificação da brisa por mais 4 vezes e finalmente a enorme engrenagem
parou. Lá estávamos nós, em solo firme, prontos para ir embora e eu me despedir
para sempre de Maria. A portinhola se abriu, desci primeiro e aguardei.
“Ora, mas veja isso! Minhas luvas estão todas sujas de
ferrugem!”, exclamou Maria ao retirar as mãos das barras. Imediatamente as descalçou, guardou na bolsa e se preparou para descer. “Me ajuda?”, ela
perguntou e estendeu-me a mão. Olhei em seus olhos e percebi que ela sorria
para mim, não pela minha covardia, mas pela pureza na qual eu me representava através de
meu medo. Não caçoava de mim, e sim tomava a iniciativa que eu jamais tomaria.
O plano, afinal, funcionou: eu aquecia minhas mãos nas de Maria. Só faltou ver
o mar.