sexta-feira, 6 de julho de 2012

Retorno


...extenuado, deprimido, afoito, ansioso, mas lá estava ele: chegou a uma grande bifurcação em sua vida. Não imaginava que se veria em tal situação, afinal sempre se comportou como quem viveria a sua vida tranquila, com os percalços normais de uma vida regular de uma pessoa normal. Mas conheceu outros caminhos, vários caminhos. Os percalços surgiram e ele resolveu experimentar diferentes vidas, diversões, depressões, decepções, encantamentos. Tornara-se mais tolerante e isso o ajudou a se relacionar. Ao menos era o que pensava.

Mas a estrada havia sido percorrida agora, não havia mais como voltar atrás, e o caminho à sua frente se abrira em duas direções. Ambas se mostravam belíssimas no horizonte, mas a frente das montanhas atingidas pelo sol não mostra os perigos de seus interiores, e ele conhecia muito melhor uma dessas vidas do que a outra. O caminho já estava escolhido, mas somente isso não bastava; ele precisa finalmente enfrentar o demônio que surge à sua frente. Tinha plena consciência que ele apareceria, mas sua figura é muito mais arrebatadora do que previa e exercia sobre ele um peso que ele já não mais podia suportar.

Evidentemente, pensou em esquecer tudo aquilo, voltar e nunca mais olhar para tais passagens; preferia não enfrentar aquele enorme demônio a desfrutar de qualquer uma daquelas belezas. Deu meia-volta e caminhou por alguns metros, e lá estava o demônio à sua frente. Era óbvio, porque ele iria embora tão facilmente? Ainda mais para ele, que não conseguia esquecer nada importante em sua vida. 

- Aonde vai, meu jovem? – perguntou o demônio.

- Embora, e tentar esquecer tudo isso.

- Venho te acompanhando ao longo dessa sua jornada; não somente essa, mas todas. Não é mais hora de esquecer; você está sempre voltando pra recomeçar. A estrada agora só tem como continuar, eu não permito mais que volte.

O demônio assumira um tom paternal, que tanto lhe faltou durante a vida; uma ou outra lição era tudo o que tinha aprendido de seu próprio pai. Criou-se em meio aos gatos e pela mãe, a mulher mais carinhosa e adorável que conheceu, e tios. Percebia agora que isso o tornara frouxo, apesar de ter convicções. Ele olhou fixo nos olhos desse pai que aparecia à sua frente e percebeu que devia voltar seus olhos para a bifurcação. Mas ela desapareceu! Agora havia um só caminho, o da montanha que lhe era familiar, que ama, a montanha em que se enxergava pelo resto da vida.

- Mas...de onde surgiram essa neblina, essas pedras? – perguntou ao pai.

- Você as criou, a partir do momento que resolveu explodir coisas; aí estão são os resquícios dessas suas explosões.

Silêncio. Aceitação. Raiva de si mesmo pelos seus atos. Resignação. Arrependimento. Choro desesperado. Tudo num só instante, tudo fruto de sua própria culpa.

- Posso voltar para ela? – perguntou enquanto olhava fixamente para o topo, que era ainda mais belo. Uma mão fraterna, mas pesada, pousou em seus ombros e o demônio entonou firmemente a voz às suas costas:

- Não sei se vai conseguir, mas você D-E-V-E tentar percorrer este caminho. Não espere que será fácil, porque não será. Tenho a impressão de que aquela montanha ainda irá acolhê-lo, mas você precisa ser o homem que não foi até hoje. Ou pelo menos o homem que eu conheci um dia. Você terá de encontrá-lo neste caminho. Há pessoas que poderão ajudá-lo durante o percurso, mas terá de querer.

Ele baixou a cabeça, viu sob seus pés que a estrada não mais era composta de um asfalto rachado, esburacado, mas de vidro: a cada passo, um corte em seu corpo. E justo em suas principais falhas. Era necessário; nunca mais esquecerá das dores que irá sofrer pelo que há de falho em seu corpo, nunca mais irá permitir que elas voltem. Ergueu a cabeça, uma brisa atinge seu rosto enquanto ele olha fixamente para a montanha.

- Sim, eu quero!

Princípios, prioridades, primeiros passos, aprimorar-se, primavera. O inverno caminhava e era hora de iniciar a jornada. E ele partiu...

sábado, 7 de abril de 2012

Orfeu e Eurídice


- Ainda bem que você pode olhar à vontade para trás, pelo menos enquanto aqui estamos, no mundo dos mortos. Aqui, onde o tempo não passa; onde a vida se repete todos os dias; onde a música é um interminável Lá, Fá, Sol; onde a lua está sempre cheia e no topo do céu; onde chove todos os dias durante 15 minutos às 7 horas da manhã, horário em que todos devem acordar; onde não se tem nada sem enfrentar fila; onde não se vai a lugar algum sem parar no trânsito; onde se ama somente sem conhecer; onde pra ter, basta não querer e, portanto, o inverso também é a norma. Ainda que aqui não haja norma e quando finalmente se acostuma, tudo muda.

- Eu entendo porque quer se manter aqui; está salva nesse interminável ciclo. E ainda lhe garantiram a eternidade. Mas venha, suba comigo; o terreno é arenoso e traiçoeiro, mas eu segurarei sua mão...sim, infelizmente minha mão é a maior garantia que posso lhe dar. Ela que hoje é forte e determinada, pode ficar fraca e distante um dia, sem motivo aparente, quando um surto de razão atingir o coração ou quando o corpo não mais aguentar segurá-la. É uma existência finita, distante de ciclos. Não fará o que quiser, mas também não lhe dirão tudo o que tiver que fazer. Você decide o que quer, mas ainda assim a decisão não é totalmente sua. Não se lembra de nada disso, minha amada? É melhor, a novidade lhe cairá bem. Ou poderá assustá-la, mas neste caso eu estarei aqui para segurar sua mão, assim como faço agora. Pena não poder te olhar; imagino se essa relutância, estes pés fincados no chão são uma resistência ao meu convite ou se você mesma está me convidando a ficar aqui. Mas eu não ouço sua voz, são só sussurros distantes, em tom grave que sequer sei se são seus. Uma gravidade que não significa doença, mas a falta da essência. Imagino se seus olhos estão a brilhar agora. De todo modo, gostaria de voltar a vê-los do modo como resplandeciam a luz solar em um tom amarelado; é o próprio sol na Terra.

- Vê adiante a luz? É ali que devemos chegar por ora. Depois disso, o mundo estará aos nossos pés. Vamos, não resista agora; não desista de nós agora.

Neste momento, Orfeu contrai seus olhos que recebem a primeira claridade dos raios solares depois de noites de incessante música de convencimento da sua lira para Hades. Os dedos que chegaram à exaustão e sangramentos profundos tremiam ao puxar a pequena mão do corpo que ele não podia olhar. Mas os dedos encaixavam como antigamente, embora estivessem já calejados pelo tempo.

- Sabe, amada Eurídice, me foi dito que se eu olhá-la agora, antes de chegarmos ao mundo dos vivos, você desaparecerá para sempre. Eu não acredito que o deus do mundo dos mortos seria tão punitivo assim. Se assim o fosse, você sequer estaria segurando minha mão. Mas nossa história demonstra que não raros são os acordos entre os homens e os deuses. É assim que encaro o que me foi dito por Hades; talvez eu não deva ver como um espírito se desprende de seu mundo e volte para o nosso. Mas nenhuma outra alma de lá me interessa além da sua, e por isso respeitarei o pacto. Só mais alguns segundos.

No passo seguinte, o braço de Orfeu é atingido em cheio pelo primeiro raio solar e ele ouve um grito de desespero profundo, rouco e de grande dor. Orfeu sente a mão, até então firme e resistente à sua condução, esmolecer-se em queda abrupta. Ele permanece em silêncio e ouve o barulho de uma corrente quebrando-se. O processo acabara, finalmente? Orfeu volta seus olhos para Eurídice que, deitada, fita-o em desesperança; ele sorri e a toma pelos braços, colocando-a em seu colo. Ao virar-se para sair da caverna na qual adentrara, uma grande força puxa a sua amada. Orfeu visualiza uma grande corrente escura no tornozelo de Eurídice. No mesmo instante, oito tentáculos negros a agarram pelos ombros, pulsos, pescoço, cintura e pernas e puxam-na de volta com a força dos deuses. Orfeu tenta ainda, em vão, resistir contra ela, mas sua luta é suficiente apenas para visualizar a ponta de uma corrente fincada no peito de sua amada. Jamais abandonou a ideia de que aquela corrente quebrara o vínculo afetivo de Eurídice com o mundo dos mortos e que agora sua amada finalmente teria consciência dos tormentos do tártaro. Tampouco esqueceu da intolerância dos deuses e nunca mais voltou a encantar ninguém com sua música.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Roda gigante


Toda vez que vejo esta roda gigante, me lembro da ferrugem de suas grades que me tornou o homem mais feliz do mundo naquela fria noite de inverno de 63. Ou 64, não me lembro; os invernos foram todos gelados no começo daquela década. Mamãe dizia até que nunca tinha ficado tão frio, o que é exatamente a mesma coisa que repito todo ano. Não sei se realmente está ficando mais frio ou se estou mais sensível, tal como minha mãe.

Como eu ansiava pegar a mão de Maria! Jamais tomei qualquer iniciativa a respeito pois o medo de ser grosseiro era ainda maior. Aquela mão parecia tão pequenina e sensível ao olhar que eu tinha medo de machucá-la com o mais leve toque. Por isso eu desejava tanto que ela decidisse encaixar sua mão na minha e recorria aos subterfúgios mais patéticos, a maioria deles sem sucesso. Antes da roda gigante, a última tentativa foi atravessar a rua na parte onde estava mais encharcada, e estendi minha mão para ajudá-la a pular. Ela, sempre muito esperta e difícil, pegou-me pelo antebraço e me arrastou para o lugar onde poderíamos atravessar confortavelmente.

A roda gigante, porém, parecia infalível: eu sempre tive medo de altura, e essa era a oportunidade perfeita para torná-lo maior que meu receio e me fazer pegar em sua mão. Convidei-a na terça para ir ao parque no sábado e me preparei para encarar o medo nos dias restantes, sofrendo, inclusive, de uma insônia crônica causada pela troca de lugar na beliche com meu irmão, que deixou claro que nunca mais devolveria a parte de baixo. Quando se é jovem e impulsivo, aceita-se qualquer coisa sem pensar num futuro que não seja o, no máximo, da próxima semana.

Nada disso importava, contanto que eu fosse capaz de controlar meu medo e não apertar muito forte sua mãozinha. E o dia gélido de sábado convergia ainda mais com meu plano; seria não só uma forma de vencer meu medo, como também de aquecermos nossos corpos um no outro. Só não estava nos meus planos ela surgir de sobretudo de couro e aquela grossa luva de lã branca.

Como qualquer parque que vai às cidadezinhas sazonalmente, o que veio ficou na praça da Igreja onde nos casamos 6 anos depois, quando finalmente me sentia à vontade de expressar meu grande amor e pegar na mão de Maria em público. Eu era, definitivamente, um homem de medos. E muitos eu perdi por ela.

Lá estavam a barraca de maçã do amor, a pescaria, as argolas, a boca do palhaço, o tiro ao pato, o carrossel, o mágico, o algodão-doce, os balões...tudo no caminho da imponente roda gigante. Era o primeiro ano que vinha à nossa cidade e era motivo de grande adoração por todos. Alguns diziam que do topo era possível até ver o mar, desconhecido para a maioria de nós. Mas, como podiam ver o mar de noite? “Ele reflete a luz da lua e conseguimos ver a onda gigante acabar com o reflexo”. Depois soubemos ser uma daquelas fantásticas histórias inventadas por uma criança replicada por adultos desejosos por fantasias do tipo.

A fila era imensa e o ranger de cada engrenagem daquela imensa roda serviu para aumentar o nosso medo a cada volta. 7 voltas que ela deu até chegar a nossa vez, quando o medo se converteu em nervosismo. Não sabia se teria coragem de pôr em prática meu plano, que a cada minuto parecia mais estúpido. Mas lá estávamos e não podíamos simplesmente ir embora de repente. Escolhi apertar com força minhas próprias mãos, caso eu sentisse medo. A roda girou e uma brisa gelada subiu pela minha nuca e por um instante esqueci a presença de Maria. Fechei os olhos. “Veja, que lindo aqui de cima!”, ela me disse e eu não consegui responder, muito menos abrir meus olhos. Senti a roda descer.

“Você está bem, Heitor?”, ela me perguntou, com a mão sobre meus ombros. Esta pergunta me soou distante, pois eu só conseguia ouvir o ranger das engrenagens e me arrepiar por inteiro com a brisa que se intensificava quanto mais a roda subia. “Segure nas barras, você vai se sentir mais seguro”, o que fiz e me fez ficar com as mãos ainda mais geladas; nada bom para alguém tão assustado. Coloquei-as no bolso e me encolhi. Senti a intensificação da brisa por mais 4 vezes e finalmente a enorme engrenagem parou. Lá estávamos nós, em solo firme, prontos para ir embora e eu me despedir para sempre de Maria. A portinhola se abriu, desci primeiro e aguardei.

“Ora, mas veja isso! Minhas luvas estão todas sujas de ferrugem!”, exclamou Maria ao retirar as mãos das barras. Imediatamente as descalçou, guardou na bolsa e se preparou para descer. “Me ajuda?”, ela perguntou e estendeu-me a mão. Olhei em seus olhos e percebi que ela sorria para mim, não pela minha covardia, mas pela pureza na qual eu me representava através de meu medo. Não caçoava de mim, e sim tomava a iniciativa que eu jamais tomaria. 

O plano, afinal, funcionou: eu aquecia minhas mãos nas de Maria. Só faltou ver o mar.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Chuva na janela: um breve relato


Um ônibus cheio em pleno 1º de Janeiro. Sonhos, planos, ansiedade para e pelo ano que se inicia. Celulares com internet, livros, Ipod’s, pessoas para conversar, abraçar - e quem sabe  beijar - ao lado. Vidas que iniciam um novo ciclo (ao menos mentais) retornam para casa, para quem sabe relaxar os corpos, voltar para entes queridos ou, ainda, recomeçar  algo ainda reminiscente, que não se perdeu na mudança do ano mas, ao contrário, latejou em uma mente que parece finalmente entender, com a explosão dos fogos, onde está a real felicidade. Apenas conjecturas.

O que se vê, de fato, é uma moça de blusa vermelha que conta sobre a viagem da semana que vem para o rapaz ao lado, contrastando com outra, sentada dois bancos à frente, que retorna da praia, frustrada pelo pouco sol que lá fez. Um bebê olha, com grande atenção, para o pai mexendo no celular enquanto este lança olhares furtivos para uma mulher de ar intelectual que folheia uma biografia de Machado de Assis e está com fones no ouvido que a dispersam do mundo. Atrás dela, um rapaz que digita no celular por bastante tempo¹. Uma senhora carrega consigo um pote de doces e sorri para a vivacidade dos netinhos que a acompanham. Estes, por sua vez, perguntam sobre o funcionamento do clima, dos ônibus, dos aviões, das bicicletas e dos foguetes; mas, principalmente, querem saber quando poderão comer os brigadeiros da vovó, que responde sempre com “já já, meu amor”. Eles fazem um pouco de manha mas no final compreendem o amor de vó e isso os alegra por ora.

O que interrompe essa teia de olhares que se entrecruzam ou se fecham em pequenos círculos e os direciona para um único ponto? Uma tempestade que começa lá fora, presente desde a aurora da humanidade, sendo o foco principal de quase toda relação e construção humanasNaquele instante, todos se silenciaram e o estrondo das gotas no solo e no teto do ônibus era o único som presente neste início de ano.

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¹ Espera-se que ele estivesse anotando tudo o que presenciava para, quem sabe, publicar posteriormente num espaço como este. Seria uma ótima experiência ler este possível relato.