sábado, 7 de abril de 2012

Orfeu e Eurídice


- Ainda bem que você pode olhar à vontade para trás, pelo menos enquanto aqui estamos, no mundo dos mortos. Aqui, onde o tempo não passa; onde a vida se repete todos os dias; onde a música é um interminável Lá, Fá, Sol; onde a lua está sempre cheia e no topo do céu; onde chove todos os dias durante 15 minutos às 7 horas da manhã, horário em que todos devem acordar; onde não se tem nada sem enfrentar fila; onde não se vai a lugar algum sem parar no trânsito; onde se ama somente sem conhecer; onde pra ter, basta não querer e, portanto, o inverso também é a norma. Ainda que aqui não haja norma e quando finalmente se acostuma, tudo muda.

- Eu entendo porque quer se manter aqui; está salva nesse interminável ciclo. E ainda lhe garantiram a eternidade. Mas venha, suba comigo; o terreno é arenoso e traiçoeiro, mas eu segurarei sua mão...sim, infelizmente minha mão é a maior garantia que posso lhe dar. Ela que hoje é forte e determinada, pode ficar fraca e distante um dia, sem motivo aparente, quando um surto de razão atingir o coração ou quando o corpo não mais aguentar segurá-la. É uma existência finita, distante de ciclos. Não fará o que quiser, mas também não lhe dirão tudo o que tiver que fazer. Você decide o que quer, mas ainda assim a decisão não é totalmente sua. Não se lembra de nada disso, minha amada? É melhor, a novidade lhe cairá bem. Ou poderá assustá-la, mas neste caso eu estarei aqui para segurar sua mão, assim como faço agora. Pena não poder te olhar; imagino se essa relutância, estes pés fincados no chão são uma resistência ao meu convite ou se você mesma está me convidando a ficar aqui. Mas eu não ouço sua voz, são só sussurros distantes, em tom grave que sequer sei se são seus. Uma gravidade que não significa doença, mas a falta da essência. Imagino se seus olhos estão a brilhar agora. De todo modo, gostaria de voltar a vê-los do modo como resplandeciam a luz solar em um tom amarelado; é o próprio sol na Terra.

- Vê adiante a luz? É ali que devemos chegar por ora. Depois disso, o mundo estará aos nossos pés. Vamos, não resista agora; não desista de nós agora.

Neste momento, Orfeu contrai seus olhos que recebem a primeira claridade dos raios solares depois de noites de incessante música de convencimento da sua lira para Hades. Os dedos que chegaram à exaustão e sangramentos profundos tremiam ao puxar a pequena mão do corpo que ele não podia olhar. Mas os dedos encaixavam como antigamente, embora estivessem já calejados pelo tempo.

- Sabe, amada Eurídice, me foi dito que se eu olhá-la agora, antes de chegarmos ao mundo dos vivos, você desaparecerá para sempre. Eu não acredito que o deus do mundo dos mortos seria tão punitivo assim. Se assim o fosse, você sequer estaria segurando minha mão. Mas nossa história demonstra que não raros são os acordos entre os homens e os deuses. É assim que encaro o que me foi dito por Hades; talvez eu não deva ver como um espírito se desprende de seu mundo e volte para o nosso. Mas nenhuma outra alma de lá me interessa além da sua, e por isso respeitarei o pacto. Só mais alguns segundos.

No passo seguinte, o braço de Orfeu é atingido em cheio pelo primeiro raio solar e ele ouve um grito de desespero profundo, rouco e de grande dor. Orfeu sente a mão, até então firme e resistente à sua condução, esmolecer-se em queda abrupta. Ele permanece em silêncio e ouve o barulho de uma corrente quebrando-se. O processo acabara, finalmente? Orfeu volta seus olhos para Eurídice que, deitada, fita-o em desesperança; ele sorri e a toma pelos braços, colocando-a em seu colo. Ao virar-se para sair da caverna na qual adentrara, uma grande força puxa a sua amada. Orfeu visualiza uma grande corrente escura no tornozelo de Eurídice. No mesmo instante, oito tentáculos negros a agarram pelos ombros, pulsos, pescoço, cintura e pernas e puxam-na de volta com a força dos deuses. Orfeu tenta ainda, em vão, resistir contra ela, mas sua luta é suficiente apenas para visualizar a ponta de uma corrente fincada no peito de sua amada. Jamais abandonou a ideia de que aquela corrente quebrara o vínculo afetivo de Eurídice com o mundo dos mortos e que agora sua amada finalmente teria consciência dos tormentos do tártaro. Tampouco esqueceu da intolerância dos deuses e nunca mais voltou a encantar ninguém com sua música.

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