quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Acorrentado

   O peso da corrente, o bico seco, a fome de liberdade...

   “- Sirva-me ou deixe-me caçar!”

   Nunca respondem! Obcecados com seus instrumentos cirúrgicos em mau estado. Não quero me tornar um suvenir vazio e adornar uma estante empoeirada e mórbida. O Sol, o frio, as grades... Meus olhos fitam o horizonte desde que cheguei aqui, mas o limite da corrente é o mesmo da minha existência.

   - Maldito taxidermista! Você precisa entender que a beleza não existe sem o brilho nos olhos. Mas quando for empalhado, minha alma estará livre, e assim poderei voar.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Gota

Como uma gota de orvalho. Me faço um amontoado de partículas, me torno a grande gota pequena, tento ser salgado, doce, amargo e azedo. Mas sempre estou da mesma forma. Escorrego como num tobogã e tenho sensações fantásticas vezes lá em cima, vezes ca embaixo sempre oscilando pela vida e indo de encontro ao chão.


Não quero ser chuva, nem granizo, tampouco neve. Parar em um mar de emoções ou lago de limitações nem pensar! Não preciso estar fadado ao chão. Depois de acariciar as belas frutas e seus adereços, quero evaporar, viver em sonhos loucos, pra finalmente ser inspirado pra dentro do todo de tudo.

                    
                                                                                                                         Rafael Mourão

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Este espaço agora tem uma pequena mudança. Gostaria de conseguir escrever com a frequência que planejei quando o criei, mas o ritmo das coisas me impede de cumprir este objetivo, pelo menos por ora. Desta forma, pedi encarecidamente a dois de meus amigos, Caio Eugênio e Rafael Mourão, conhecedor de seus dons para a escrita, que me ajudassem a manter o espaço com a maior atividade possível.

Acima, o texto de estreia do Rafael. Segundo ele, “uma apresentação para o blog”. Seja muito bem-vindo. E a vocês, leitores: desfrutem!

sábado, 19 de novembro de 2011

Distúrbio


Daqui de cima tudo é tão bonito! Essa vida eu viveria sem nunca me cansar. É engraçado entender o porque da analogia das ruas da cidade com as artérias do corpo humano; de fato, as pessoas e carros correm como sangue neste grande organismo.  À margem disso, algumas gorduras espalhadas: os mendigos, encrostados, “descartáveis urbanos”, como li um dia durante minha graduação. Evidente que havia um enorme tom de crítica na expressão, e eu não posso deixar de concordar que ela é, ao mesmo tempo, absurda e verdadeira. Mesmo assim, é curioso notar como eles se posicionam em meio ao emaranhado de gente: são as formigas feridas que não serão amparadas pela colônia. A semelhança com elas acaba aqui, entretanto; não há o mínimo de organização nesta população. Eles desviam-se, trombam-se, uns sentam-se enquanto outros correm desesperadamente olhando para o relógio ou atrás de um ônibus. Bandos inteiros param para observar a loira de vestido vermelho que transita graciosamente pela praça, sabedora de seu charme. É possível ver tudo isso daqui.

E também reparo que ninguém olha para o alto. O céu não é apreciado em meio a tantos prédios. Mas daqui, onde não há esse limite, percebo o quanto os de baixo perdem. Perder-se na imensidão azul e branca por uns instantes provavelmente acalmaria muitos corações e mentes. Eu mesmo talvez não precisasse estar aqui neste instante se tivesse olhado pra cá algumas vezes.

Pingos d’água começam a cair, contudo. Por este motivo, muitos olham para cima, e notam minha presença. Ou melhor, provavelmente notam um par de pés pendurado à beira do topo do edifício. Gritos histéricos começam a ecoar e a multidão lá embaixo se agita: um bando de pontos pretos esparsos e desordenados se aglomera num lugar em comum e torna-se de múltiplas cores; os rostos estão voltados em minha direção. Tudo o que eu não queria.

- Não pule! –, é só o que consigo distinguir da confusão de vozes lá de baixo. Até a moça de vestido vermelho deixa de ser notada. Também ela deixa de lado sua vaidade para olhar para mim.

Acredito que será o fim de tudo. Não creio num paraíso, inferno, purgatório ou reencarnação. E fiz minha escolha; quero o fim neste instante. Mas quero que seja em paz. Já me distanciei o suficiente para fazer falta não mais que dois ou três dias. As pessoas ali embaixo não sabem disso, pensam que estou aqui porque devo ter perdido o emprego, briguei com a esposa, estou endividado, deprimido ou coisas do tipo. Os clichês do suicídio: creio que não me encaixo em nenhum deles. Penso simplesmente que há vazio e falta de sentido demais na vida e na humanidade. E essa falta de intensidade sempre me fez muito mal; somos sempre muito intensos em relação ao dinheiro, ao sexo, à paixão, ao trabalho, etc., mas esquecemos dos gatos em nossas varandas, do céu acima de nós, da mangueira sexagenária em uma rua qualquer de um bairro pacato. Talvez essa condição blasé seja própria do ser humano, mas nunca deixou de me incomodar. Assim sendo, simplesmente gostaria de não mais me incomodar, mas sim respirar o ar diferente daqui de cima por uns instantes, aproveitar a visão única, sentir a sensação única do vento sobre o rosto em queda livre e desligar. Eu me conformei com isso; por que o povo ali de baixo não?

Um carro dos bombeiros chega, uma equipe sobe até o telhado e tenta o primeiro contato. Não gostaria de sentir que minha morte será um estorvo, um desastre televisivo, nem que ninguém reflita sobre isso. Acho que escolhi o pior lugar e hora para isso. Esse ponto final já estava cheio de conflitos não resolvidos com a sociedade.

- Estamos aqui para ajudar, senhor. Por favor, fique calmo –, me disse um deles.

- Sim, vocês fazem um ótimo trabalho. Admiro o que fazem pela sociedade e ficarei calmo, como me pediu -, respondi, cordialmente.

- Então me ajude neste também. Normalmente, devo ser chamado pelo meu sobrenome, Paiva. Mas você pode me chamar de Roberto, meu primeiro nome. Qual o seu? – ele perguntou, tomando todas as precauções para que eu não me agitasse e caísse por acidente. Admiráveis esses bombeiros; realmente querem salvar vidas.

- Meu nome não é importante. E você tem o nome do meu pai. Pode me chamar assim também.

- Por que não quer ser chamado pelo seu nome? Você é um indivíduo, senhor. E é muito importante para a sociedade, para sua família e amigos. -, me decepcionei um pouco com o clichê mas dirigi-lhe um sorriso amigável.

- Porque eu vou sair daqui da beira e irei junto com você, Roberto. Mas vou deixar de viver em breve, e não gostaria que você me identificasse depois. Vou tomar o cuidado de fazer isto longe da sua base, assim você sequer irá recolher meu corpo. É uma questão que já está decidida, mas quero fazer de forma discreta, e esse alarde todo me fez perder a vontade. Caso saia no jornal quando eu fizer novamente, você não saberá que sou eu.

Percebi a confusão no olhar de Roberto, o que é absolutamente normal. Uma calma dessa para um suicida provavelmente é a mesma de um psicopata, e os bombeiros não lidam com esse tipo de gente. Creio que seja mais fácil sentir-se satisfeito em salvar alguém que se debata em desespero do que alguém convencido somente pela presença dele ali. Espero que ele passe a acreditar que salvou uma vida e não me reconheça depois, quando eu for mais eficaz em meu ponto final.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

O Estrangeiro


Não são poucos os que dizem que todo bom escritor é melancólico, solitário, bem como toda boa obra literária é densa, triste, carregada dos piores sentimentos humanos. Ao lermos a maldade é que enxergamos o bem. O debate é longo, diz respeito aos objetivos da arte para a humanidade (isso se houver algum) e não penso em tratá-lo aqui. Quero falar de minha manhã.

Fui despertado por uma brisa leve que atingiu minhas persianas e chegou ao meu rosto, denunciando a aurora, seguida, em poucos minutos, de uma luz solar amarelada que repousou sobre os telhados vizinhos. Me levantei e vi meu pequeno siamês enrolado, embaixo de seu cobertorzinho, perceber o movimento de meus passos, abrir seus pequeninos olhos azuis, certificar que está tudo bem e voltar a esconder-se da luz do dia em suas pequenas patas. Fui à varanda e vi um casal de idosos caminhar suavemente na rua deserta, onde não se ouve mais do que os ecos de uma cidade que ainda despertava. Estão se exercitando e andam de mãos dadas; não trocam palavras entre si, mas sincronizam seus passos de forma incrível. “As palavras também são desnecessárias, como o provam os mudos de nascença“, já disse Campos de Carvalho. Finalmente o compreendi.

Faço um chocolate quente, ligo a TV e me sinto um transgressor de minha idade, sorrindo ao assistir o Tom executando a Rapsódia Húngara de Liszt, enquanto Jerry sabota-o de todas as formas. Torço sempre pelos gatos, seja qual for a ocasião. Meu pequeno siamês incomoda-se com o volume e a claridade tão próxima e vem ao sofá, em minha direção. Aproveita-se de minha calça de moletom ainda quente para aconchegar-se e cair no sono, enquanto acaricio-o e ouço seu ronronar escandaloso. Dorme com tremenda felicidade e me faz sorrir, desejando a eternidade para aquele momento.

Dirigi-me ao quarto de meu filho, que completou 1 ano há duas semanas, numa festa que foi mais para os convidados que para ele. Jurei a mim mesmo dedicar todas as outras cerimônias para quem realmente é importante. Mas isso deve ser normal para quem é pai de primeira viagem, e ele sorriu por alguns momentos, o que fez a comemoração valer a pena, afinal. Em seu bercinho, ele dorme profundamente ao som dos pequenos sinos sobre seu berço, movimentados pela leve brisa da manhã. Vejo o centro da razão de minha existência e da vida como um todo naquele estufar e esvaziar de sua pequena pança. Meu pequeno siamês adentra o quarto e mia para mim, desesperado em pensar que o troquei pelo bebê. Eles vão se entender um dia. Por ora, somente eu desfruto ao máximo o prazer da companhia de cada um, me tornando mais feliz todas as manhãs de minha vida. Especialmente essa.

Apesar disso, precisei despedir-me de ambos e partir pelo resto do dia. Hoje, mamãe morreu.