quinta-feira, 10 de novembro de 2011

O Estrangeiro


Não são poucos os que dizem que todo bom escritor é melancólico, solitário, bem como toda boa obra literária é densa, triste, carregada dos piores sentimentos humanos. Ao lermos a maldade é que enxergamos o bem. O debate é longo, diz respeito aos objetivos da arte para a humanidade (isso se houver algum) e não penso em tratá-lo aqui. Quero falar de minha manhã.

Fui despertado por uma brisa leve que atingiu minhas persianas e chegou ao meu rosto, denunciando a aurora, seguida, em poucos minutos, de uma luz solar amarelada que repousou sobre os telhados vizinhos. Me levantei e vi meu pequeno siamês enrolado, embaixo de seu cobertorzinho, perceber o movimento de meus passos, abrir seus pequeninos olhos azuis, certificar que está tudo bem e voltar a esconder-se da luz do dia em suas pequenas patas. Fui à varanda e vi um casal de idosos caminhar suavemente na rua deserta, onde não se ouve mais do que os ecos de uma cidade que ainda despertava. Estão se exercitando e andam de mãos dadas; não trocam palavras entre si, mas sincronizam seus passos de forma incrível. “As palavras também são desnecessárias, como o provam os mudos de nascença“, já disse Campos de Carvalho. Finalmente o compreendi.

Faço um chocolate quente, ligo a TV e me sinto um transgressor de minha idade, sorrindo ao assistir o Tom executando a Rapsódia Húngara de Liszt, enquanto Jerry sabota-o de todas as formas. Torço sempre pelos gatos, seja qual for a ocasião. Meu pequeno siamês incomoda-se com o volume e a claridade tão próxima e vem ao sofá, em minha direção. Aproveita-se de minha calça de moletom ainda quente para aconchegar-se e cair no sono, enquanto acaricio-o e ouço seu ronronar escandaloso. Dorme com tremenda felicidade e me faz sorrir, desejando a eternidade para aquele momento.

Dirigi-me ao quarto de meu filho, que completou 1 ano há duas semanas, numa festa que foi mais para os convidados que para ele. Jurei a mim mesmo dedicar todas as outras cerimônias para quem realmente é importante. Mas isso deve ser normal para quem é pai de primeira viagem, e ele sorriu por alguns momentos, o que fez a comemoração valer a pena, afinal. Em seu bercinho, ele dorme profundamente ao som dos pequenos sinos sobre seu berço, movimentados pela leve brisa da manhã. Vejo o centro da razão de minha existência e da vida como um todo naquele estufar e esvaziar de sua pequena pança. Meu pequeno siamês adentra o quarto e mia para mim, desesperado em pensar que o troquei pelo bebê. Eles vão se entender um dia. Por ora, somente eu desfruto ao máximo o prazer da companhia de cada um, me tornando mais feliz todas as manhãs de minha vida. Especialmente essa.

Apesar disso, precisei despedir-me de ambos e partir pelo resto do dia. Hoje, mamãe morreu. 

Um comentário:

  1. Mais um lindo texto deste jovem que faz "poesia" em prosa...Imagens e sentimentos de tanta doçura ás vezes melancólica e outras vezes apenas a fugaz plenitude existencial do personagem. Tão Bonito...Parabéns Raul...É sempre muito prazeroso ler suas cronicas, seus ensaios, enfim...

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