segunda-feira, 10 de outubro de 2011

A criação da eremita

... e, de arma apontada à própria cabeça, vocifera contra a família que o abandonara. Seu único filho come seu pedaço de pizza enquanto olha-o fixamente, embora com indiferença. Paolo compreende, finalmente, sua insignificância: se houve algum acontecimento que o tornou importante em sua quinquagenária vida foi ter sobrevivido e tirado proveito da grande crise econômica, o que possibilitou a boa formação de Marco, que agora ingeria a pizza preparada pelo pai, saboreando seu gosto de morte. Paolo desiste do disparo, mas não por muito tempo.”

A primeira metade do livro já foi lida. Aline sentia-se tão envolvida pela trama que logo tratou de virar a página. O restante, contudo, estava em branco, e ela não tinha a menor ideia de como preenchê-lo. Sabia como a história termina e como toda a trama se desenrolava e terminaria na pizza que Marco digeria; faltava-lhe desenvolver o resto. O último parágrafo já estava em sua cabeça: “Paolo disparou silenciosamente, e executou sua família, seu bem mais precioso, de forma indolor e ingênua; eles caíram subitamente, um a um, em paz. Assim, seria bem quisto no paraíso.”. Um caminho de 120 páginas a se percorrer para explicar a ligação entre aquele momento e todo o contexto, projetar ações em seus personagens, tornar mafiosos caricaturais em seres densos, soturnos; criaturas que agem durante a noite, silenciosos e eficazes; predadores quase que naturais. Tanta ferocidade os levaria à ruína pela fome e pelo egocentrismo. Paolo aplicara-lhes um teste, e eles todos falharam.

O final, a moral da história, a tese de que o homem morre pela sua própria fome estava pronta; faltava a Aline argumentar nessa direção. Construir esse caminho como natural, como seres humanos, tendo poderes sobre a vida de outros, se corrompem aos poucos. Os grandes marcos se construíam rapidamente na cabeça de Aline; era capaz de descrever com grande eloquência a decapitação de Luís XVI, mas não passava pela sua cabeça o processo de esfriamento do coração do carrasco até aquele momento. Como teria sido sua infância? Sua primeira execução? O primeiro disparar de coração ao tirar a vida de uma criatura qualquer, a primeira hesitação diante da súplica desesperada de um homem que transmitia a inocência de sua alma pelos olhos?

Aline esperou pelo anoitecer e foi até a rua mais isolada de seu bairro: uma pequena viela repleta de pequenas casas térreas, onde residem idosos que seguem um padrão de vida interiorano. Às 9 horas a rua está morta e escura, já que a luz dos postes não funciona e nenhum carro passa por ali. Em poucos minutos, seus olhos se acostumaram à escuridão e ela já era capaz de ver o vulto dos ratos saindo dos bueiros, rumo à caçada noturna de restos dos humanos. Um calafrio lhe subiu à espinha quando a cauda de um deles roçou sua canela, embora ela não sentisse medo destes roedores. Seus ouvidos ambientados passaram a perceber o menor ruído na rua e no interior das casinhas, aflorando-lhe os devaneios mais improváveis. Aline jamais sentira medo nas ruas, mas passava a ficar atenta com o barulho de passos na esquina. Tomava nota mental de cada nova e pequena sensação, de modo a ser capaz de descrevê-las. Pensava que o escritor devia pôr-se à prova, até o limite; só assim sua escrita transcenderia o ordinário: não lhe agradava a ideia, por exemplo, de um romance onde o amor era imediato. Para ela, os distúrbios fortalecem qualquer relação e, quanto mais problemáticos os personagens, mais problemático o amor. Mas a verdadeira vida é problemática!

Aquela era uma noite de calor, mas Aline sentia suas mãos geladas, a ponto de abraçar as próprias pernas para se aquecer. E os ratos não paravam de sair; mas, ao invés de se acostumar com eles, sentia-se cada vez mais amedrontada. Passava a enxergar também pequenos pontos ligeiros nas paredes brancas. Baratas. Onde estariam as lagartixas agora? Havia fartura e ela precisava de uma certa proteção. Temia que a cada momento uma barata subiria pelos pés e ela teria que afastá-las com as mãos. Só o sentimento do talvez a amedrontava e ela passou a entender melhor como funciona a paranoia; isso seria útil para Paolo. Mas faltava-lhe ir além, e isso a manteve naquela viela escura.

Uma moto adentra a rua, apavorando Aline com o farol. O motociclista avança lentamente; ela não enxerga nada, além da luz alta voltada diretamente para seus olhos e a enorme sombra escura atrás dela. Os ratos correm desesperadamente para os bueiros e ela pensa que eles são criaturas, de fato, paranoicas. Mas o desespero de Aline a imobiliza. De coração disparado, percebe o motociclista parando ao seu lado, com a moto ligada: sua roupa é totalmente preta e é impossível ver algo dentro do capacete, que está com sua parte frontal voltada para ela. Ele desliga o motor e a observa. Dentro de uma das casas, uma tosse gutural e passos arrastados de sandália em direção à janela. O motoqueiro olha para a casa e Aline, apertando a saia de seu vestido, continua imóvel, olhando-o, atônita. Um estrondo abre a janela e mais tosses. A moto é religada e parte em disparada. Da janela, ouvem-se mais tosses, o escarrar e cuspir de um velho, que volta para sua cama nos mesmos passos arrastados de sandália. A seguir, um vento forte agita os cabelos da moça, trazendo consigo uma jasmim, que a atinge em cheio no rosto, e o maior alívio de sua vida.

Em 15 dias, termina seu projeto. “Assim, seria bem quisto por um paraíso repleto de jasmins, que estão em movimento todo o tempo, num turbilhão de tranquilidade.”

2 comentários:

  1. Olá Raul...Este texto me colocou numa saia justa...Como deveria ler...A partir de fatos concretos e situações concretas...Ou ele todo seria uma metáfora que também me fascinou e levou a pensamentos malucos e errantes...Voce está conseguindo uma coisa linda com seus textos...Que é levar o leitor a conversar e questionar o que le.Impossivel ficar indiferente a profundidade, aos cheiros ou a textura do texto...Estive no beco(ou submundo da alma)com a personagem e senti medo e frio...Parabéns...Muito bom.

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