quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Inércia

Aqui estou, entregue ao seu julgamento. Cansei de me esconder em heterônimos fantásticos, anacrônicos, misantropos, embriagados e herméticos que me habituei a escrever. Todos esses personagens refletem uma parte de mim no passado, presente ou ideal de futuro que sempre me foi projetado por todos ao meu redor. Mas digo de antemão: sigo o padrão dos homens e ao longo do tempo mais decepcionei que orgulhei meus congêneres. Meu trabalho sempre foi o de mascarar tamanhas decepções e torná-las justificáveis, mesmo que por vezes bastasse a simples admissão do erro e eu seria esquecido; quem sabe as expectativas sobre mim diminuíssem dessa forma?

Falei a respeito de um padrão dos homens e isso significa que considero que não há diferenças significativas entre nós. Por mais que estejamos presos a idiossincrasias, vicissitudes e genética distintas, somos incutidos por valores morais quase que idênticos desde nosso nascimento. Estes, que pretensamente igualariam os desiguais reproduziram formas de vida convenientes e angústias sem escapatória; o espírito está preso à dicotomia sucesso-fracasso, onde é possível a consulta de manuais que nos levam para um caminho ou outro. Ademais, fez com que certas pessoas acreditassem numa bondade congênita: “ele não faria mal a uma mosca!”, “ele sempre foi tão inteligente, e parece sempre contar com a sorte, vai ser bem sucedido naturalmente”. Ouvir isso nunca facilitou minha vida, mas ao contrário, a tornou mais difícil. “Naturalmente”, eu teria que ser bem sucedido em tudo o que fizesse ao longo de minha vida. E se não, não era pra ser, e logo algo melhor apareceria. Mas me responda, caro leitor: se a expectativa é que as coisas sempre melhorariam para mim, por que eu deveria me apegar ao presente ou tentar aprender com o passado? “Naturalmente”, todos os acontecimentos de minha vida seriam superados por outros, melhores, e isso diz respeito a trabalhos, amizades, amores, aprendizados.

Aos 40, percebi que as coisas, na verdade, não melhoravam e nunca tinham chegado a um ápice. Minha vida estava cercada de anti-clímax; o trabalho para o qual agora era qualificado (pois tinha negligenciado adquirir experiências e competências evocando a sorte) me era negado pela idade; uma relação amorosa, para a qual agora estava pronto para encarar com maturidade, me era negada, pois agora era um solteirão de idade relativamente avançada e que nunca se comprometera com ninguém. Não era  confiável se envolver comigo. Era tarde para recomeçar, era cedo para acabar. Restava o martírio e o peso a se carregar até o fim; as lamentações e reflexões na busca de uma descoberta sobre como minha vida chegara àquele ponto, a busca pela lógica do fracasso.

Mais uma vez, me justifiquei: a culpa estava nos que me supervalorizaram e me tornaram num preguiçoso que contava sempre com a sorte e em minha suposta superioridade sobre os demais.

Me acomodei. Cedo ou tarde, imaginava que seria agraciado pelos que tiveram a honra de me conhecer e que perceberiam meu valor naturalmente. Tudo haveria de ser natural quando se tratava de um ser superior como eu, dotado de grande capacidade inata. Me orgulhei até os 50 anos de, no colegial, calcular, de cabeça, uma multiplicação de vários algarismos mais rápido que o tempo que meus colegas levavam para realizar a operação na calculadora. Era evidente que eu aprendia mais rápido que os outros; logo, me bastariam dez minutos para entender qualquer assunto. Na faculdade, me entediava com o academicismo exagerado e discentes que estavam ali somente para puxar o saco dos docentes. Contentava-me em tirar uma nota razoável sem estudar tanto tempo e aproveitar outras facetas da vida a me matar de estudar por coisas que em anos estariam esquecidas nas profundezas de qualquer mente. Bastava o diploma e um ótimo trabalho viria naturalmente; as pessoas olhavam para mim e percebiam um ar de sabedoria e meu vocabulário rebuscado reafirmava tais pontos de vista.

Mas minha mente estava dispersa, voltada demais aos aspectos gerais da vida e pouco apegada às miudezas técnicas de ciências cartesianas sem sentido. Meus trabalhos não tinham relevância e pouco me acrescentaram ao longo dos anos. Mas naturalmente algo melhor viria. Naturalmente, um amor viria ao meu encontro. Naturalmente, eu corresponderia às expectativas que foram depositadas em mim. Naturalmente, a culpa foi dos outros. Lamento que o mundo não tenha percebido o quanto eu era especial para ele e tenha me isolado, mantendo-se em sua mediocridade.

Hoje, aos 73, percebo que o natural na linha do tempo e da vida é o declínio, a doença e a morte. Mas, naturalmente, você terá que vir a mim para aprender esta valiosa lição que tenho a lhe ensinar. Escrevo de forma medíocre, mas discurso esplendidamente.

                                                                                                P. A. de C.

2 comentários:

  1. Legítima Gestalt... O home percebe-se em cada momento advindo de venturas e desventuras e espera o que háde vir... O título "Inércia" já é um remetente feliz para o texto... O sujeito do que há de vir, mas nunca chega caracteriza a legítima Gestalt... Em cada momento uma sensação e apenas ao fim do caminho uma certeza ou não... Era preciso o conjunto das etapas... Mas quem sabe quanto psicologia e filosofia aqui se confundem, percebe ao fim do suposto ciclo um questionamento, uma reticência, algo a mais porque fazer perguntas sobre si e o meio...
    Pra mim, esse contexto, essa incertezas que vão se recriando, a própria condição humana são um reflexo do Título do texto...

    Parabéns... Mais uma vez gostei muito do que escreveu.

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  2. Sani Gimenez
    Que texto denso...E muito bom...Fotos e fatos de tantos de nós...Tantas expectativas, movimentos, pensamentos, esta busca louca pelo que talvez possamos vir a ser...Me proponho pensar ou repensar a expectativas em relação a nós e aos seres que convivem conosco!!!Parabéns, Raul Dias Gimenez...Nossa!!!Como seus textos estão amdurecendo(não tenho certeza se esta seria a melhor maneira de adjetiva-los, mas...)

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