sábado, 19 de novembro de 2011

Distúrbio


Daqui de cima tudo é tão bonito! Essa vida eu viveria sem nunca me cansar. É engraçado entender o porque da analogia das ruas da cidade com as artérias do corpo humano; de fato, as pessoas e carros correm como sangue neste grande organismo.  À margem disso, algumas gorduras espalhadas: os mendigos, encrostados, “descartáveis urbanos”, como li um dia durante minha graduação. Evidente que havia um enorme tom de crítica na expressão, e eu não posso deixar de concordar que ela é, ao mesmo tempo, absurda e verdadeira. Mesmo assim, é curioso notar como eles se posicionam em meio ao emaranhado de gente: são as formigas feridas que não serão amparadas pela colônia. A semelhança com elas acaba aqui, entretanto; não há o mínimo de organização nesta população. Eles desviam-se, trombam-se, uns sentam-se enquanto outros correm desesperadamente olhando para o relógio ou atrás de um ônibus. Bandos inteiros param para observar a loira de vestido vermelho que transita graciosamente pela praça, sabedora de seu charme. É possível ver tudo isso daqui.

E também reparo que ninguém olha para o alto. O céu não é apreciado em meio a tantos prédios. Mas daqui, onde não há esse limite, percebo o quanto os de baixo perdem. Perder-se na imensidão azul e branca por uns instantes provavelmente acalmaria muitos corações e mentes. Eu mesmo talvez não precisasse estar aqui neste instante se tivesse olhado pra cá algumas vezes.

Pingos d’água começam a cair, contudo. Por este motivo, muitos olham para cima, e notam minha presença. Ou melhor, provavelmente notam um par de pés pendurado à beira do topo do edifício. Gritos histéricos começam a ecoar e a multidão lá embaixo se agita: um bando de pontos pretos esparsos e desordenados se aglomera num lugar em comum e torna-se de múltiplas cores; os rostos estão voltados em minha direção. Tudo o que eu não queria.

- Não pule! –, é só o que consigo distinguir da confusão de vozes lá de baixo. Até a moça de vestido vermelho deixa de ser notada. Também ela deixa de lado sua vaidade para olhar para mim.

Acredito que será o fim de tudo. Não creio num paraíso, inferno, purgatório ou reencarnação. E fiz minha escolha; quero o fim neste instante. Mas quero que seja em paz. Já me distanciei o suficiente para fazer falta não mais que dois ou três dias. As pessoas ali embaixo não sabem disso, pensam que estou aqui porque devo ter perdido o emprego, briguei com a esposa, estou endividado, deprimido ou coisas do tipo. Os clichês do suicídio: creio que não me encaixo em nenhum deles. Penso simplesmente que há vazio e falta de sentido demais na vida e na humanidade. E essa falta de intensidade sempre me fez muito mal; somos sempre muito intensos em relação ao dinheiro, ao sexo, à paixão, ao trabalho, etc., mas esquecemos dos gatos em nossas varandas, do céu acima de nós, da mangueira sexagenária em uma rua qualquer de um bairro pacato. Talvez essa condição blasé seja própria do ser humano, mas nunca deixou de me incomodar. Assim sendo, simplesmente gostaria de não mais me incomodar, mas sim respirar o ar diferente daqui de cima por uns instantes, aproveitar a visão única, sentir a sensação única do vento sobre o rosto em queda livre e desligar. Eu me conformei com isso; por que o povo ali de baixo não?

Um carro dos bombeiros chega, uma equipe sobe até o telhado e tenta o primeiro contato. Não gostaria de sentir que minha morte será um estorvo, um desastre televisivo, nem que ninguém reflita sobre isso. Acho que escolhi o pior lugar e hora para isso. Esse ponto final já estava cheio de conflitos não resolvidos com a sociedade.

- Estamos aqui para ajudar, senhor. Por favor, fique calmo –, me disse um deles.

- Sim, vocês fazem um ótimo trabalho. Admiro o que fazem pela sociedade e ficarei calmo, como me pediu -, respondi, cordialmente.

- Então me ajude neste também. Normalmente, devo ser chamado pelo meu sobrenome, Paiva. Mas você pode me chamar de Roberto, meu primeiro nome. Qual o seu? – ele perguntou, tomando todas as precauções para que eu não me agitasse e caísse por acidente. Admiráveis esses bombeiros; realmente querem salvar vidas.

- Meu nome não é importante. E você tem o nome do meu pai. Pode me chamar assim também.

- Por que não quer ser chamado pelo seu nome? Você é um indivíduo, senhor. E é muito importante para a sociedade, para sua família e amigos. -, me decepcionei um pouco com o clichê mas dirigi-lhe um sorriso amigável.

- Porque eu vou sair daqui da beira e irei junto com você, Roberto. Mas vou deixar de viver em breve, e não gostaria que você me identificasse depois. Vou tomar o cuidado de fazer isto longe da sua base, assim você sequer irá recolher meu corpo. É uma questão que já está decidida, mas quero fazer de forma discreta, e esse alarde todo me fez perder a vontade. Caso saia no jornal quando eu fizer novamente, você não saberá que sou eu.

Percebi a confusão no olhar de Roberto, o que é absolutamente normal. Uma calma dessa para um suicida provavelmente é a mesma de um psicopata, e os bombeiros não lidam com esse tipo de gente. Creio que seja mais fácil sentir-se satisfeito em salvar alguém que se debata em desespero do que alguém convencido somente pela presença dele ali. Espero que ele passe a acreditar que salvou uma vida e não me reconheça depois, quando eu for mais eficaz em meu ponto final.

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