“Ah, foda-se!”, foi o primeiro (e único) pensamento de Rodolfo ao ser expulso daquele bar às 3 da madrugada, por flertar com uma mulher casada e, com isso, se meter em uma briga com o marido – fraco, mas cliente antigo e cheio de privilégios. Entrou no bar uma quadra abaixo e reconheceu a pouca iluminação da maior parte do ambiente contrastando com a luz forte à sua direita, sobre a prateleira de bebidas organizadas em ordem alfabética; à sua esquerda, uma mesa de bilhar mal cuidada e com duas bolas 8. À sua frente, na parede ao lado do banheiro, um antigo calendário pornográfico. A folha era ainda a de Julho, mês de inverno, e uma loira vestindo Ushanka preenchia a página já manchada pelo tempo. Uma boa motivação para ir ao banheiro.
Algo dizia aos seus sentidos que já tinha estado naquele lugar. A porcelana quebrada, a luz instável - mais tempo apagada que acesa -, a caixa de descarga acionada por cordinha com a inscrição “Letícia, eu te amo”, a foto de John Lennon colada no teto, o modo abafado como o som das risadas vindas de fora entravam, o espelho quebrado; tudo lhe era familiar. Um vestido vermelho, deixando escapar pernas que usavam uma meia-calça escura, veio à mente enquanto mijava. Déjà-vu? A lembrança era vívida demais para tal. Olha-se no espelho enquanto lava as mãos.
- Seu bêbado louco. – E a luz se apaga para não mais acender. Tateia pelas paredes, reconhecendo o aquecimento em um determinado ponto. Na certa, deve existir um grande forno do outro lado; “hum... mas lá não está tão quente quanto aqui”, sua mente sussurra e sorri, em voz feminina. Uma mordida em sua orelha. O vestido, que desnuda ombros brancos e de pele delicada, volta a aparecer em um flash; ele se apóia mais forte na parede aquecida, contrai a mão restante, sentindo a poliamida que cobre pernas grossas, fazendo-o ter uma ereção. Respira forte, fecha os olhos e se entrega à sensação: sente o cheiro de um perfume, que contrasta a suavidade de um aroma levemente doce com a embriaguez provocada por um bom porre de vinho. Um perfume masculino numa pele feminina: um gracejo que mostra que qualquer essência cheira melhor num corpo de mulher.
Sai do banheiro e senta-se em uma das poucas cadeiras restantes, próximo à rua e de frente para a porta de onde acabara de sair. Vê as pessoas entrando e saindo e, submerso em seu entorpecimento, se diverte em pensar nas razões de cada uma delas. Pede uma garrafa de vinho, mas lembra-se, na metade dela, que já está sem dinheiro. Levanta-se, bebe um pouco, devolve a garrafa à mesa, olha para o homem no balcão com um pano branco em seu ombro esquerdo lavando copos, franze a sobrancelha, estende as palmas das mãos e encolhe os ombros.
- De novo, seu filho da puta?! -, grita o dono do bar, que fecha a torneira e avança furiosamente contra o rapaz. Pega-o pelo colarinho e puxa para perto de si com tanta força, de modo a deixar claro que ele não sentirá a menor piedade por aquele pobre rapaz bêbado, incapaz sequer de assimilar um soco e permanecer de pé. Percebe também que poderia sequer lembrar o que aconteceu; bater nele poderia ser inútil e desagradável de se ver. Atira-o contra a parede próxima à saída e joga, brutalmente, a jaqueta de couro presa à cadeira onde Rodolfo sentava-se. – Se voltar, vou garantir que seja a última vez.
Rodolfo não tem força para se mover. Joga a cabeça para trás até encostá-la na parede e olha para o teto. O mundo se contorce. Gira a cabeça para enxergar a saída, percebe o movimento na rua que fervilha em plena madrugada e imagina o quanto ainda podia se divertir lá fora. Espera o dono se afastar, volta seus olhos para a mesa e avança em direção a ela. Sorri o sorriso dos insolentes e diz ao dono:
- Bem, nesse caso, a garrafa vem comigo.
Um copo voa e se estilhaça na mesa, cortando o braço do rapaz, que percebeu não haver meios de escapar daquela luta. O bêbado pensou ser um tremendo provocador; ou o dono daquele bar tinha o pavio muito curto; de qualquer forma, ambos pareciam gostar de uma boa briga. Contudo, Rodolfo tinha fome, estava cansado e tonto, o cheiro de sangue era forte e um mal-estar súbito o atingiu, diante da iminência de ter seu corpo atirado na rua. Apoiou-se com a mão esquerda na mesa e cerrou o punho da direita, com o coração disparado e olhar turvo, esperando pela surra.
(Continua)
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Nota do autor: Faço, neste blog, um novo experimento: uma história dividida em partes. Como sempre, vem a ideia de um tema e em seguida a prática - a abstração para a objetivação. Mas o processo criativo não é algo que se preveja nem se molde; os dedos e palavras fluem conforme o rio de nossas mentes. Dessa forma, este é um conto que está em andamento, e, para não publicá-lo de uma vez, num tamanho despropositado ao conceito deste espaço e à paciência de muitos leitores, divido-o em doses homeopáticas, aguardando comentários. Mesmo que seja para o caso de dar uma mudança de rumos ao que já está feito.
Um pouco de loucura, um pouco de embriaguez... lembranças de outra vida ou da semana passada... doses homeopáticas, quando possíveis são bem-vindas...
ResponderExcluirAs palavras fluem conforme o rio de nossas mentes... (Acertada reflexão)...
Como sempre te leio e me encontro nas palavras e em seu rítmo de escrever...
Muito bom...
O conto está muito bom, e os personagens ganhando vida...
ResponderExcluirValeu, Raul!
Um abraço, Alberto