Daqui
de cima tudo é tão bonito! Essa vida eu viveria sem nunca me cansar. É
engraçado entender o porque da analogia das ruas da cidade com as artérias do
corpo humano; de fato, as pessoas e carros correm como sangue neste grande
organismo. À margem disso, algumas
gorduras espalhadas: os mendigos, encrostados, “descartáveis urbanos”, como li
um dia durante minha graduação. Evidente que havia um enorme tom de crítica na
expressão, e eu não posso deixar de concordar que ela é, ao mesmo tempo,
absurda e verdadeira. Mesmo assim, é curioso notar como eles se posicionam em
meio ao emaranhado de gente: são as formigas feridas que não serão amparadas
pela colônia. A semelhança com elas acaba aqui, entretanto; não há o mínimo de
organização nesta população. Eles desviam-se, trombam-se, uns sentam-se
enquanto outros correm desesperadamente olhando para o relógio ou atrás de um
ônibus. Bandos inteiros param para observar a loira de vestido vermelho que
transita graciosamente pela praça, sabedora de seu charme. É possível ver tudo
isso daqui.
E
também reparo que ninguém olha para o alto. O céu não é apreciado em meio a
tantos prédios. Mas daqui, onde não há esse limite, percebo o quanto os de
baixo perdem. Perder-se na imensidão azul e branca por uns instantes
provavelmente acalmaria muitos corações e mentes. Eu mesmo talvez não
precisasse estar aqui neste instante se tivesse olhado pra cá algumas vezes.
Pingos
d’água começam a cair, contudo. Por este motivo, muitos olham para cima, e
notam minha presença. Ou melhor, provavelmente notam um par de pés pendurado à beira do topo
do edifício. Gritos histéricos começam a ecoar e a multidão lá embaixo se
agita: um bando de pontos pretos esparsos e desordenados se aglomera num lugar
em comum e torna-se de múltiplas cores; os rostos estão voltados em minha
direção. Tudo o que eu não queria.
-
Não pule! –, é só o que consigo distinguir da confusão de vozes lá de baixo.
Até a moça de vestido vermelho deixa de ser notada. Também ela deixa de lado
sua vaidade para olhar para mim.
Acredito
que será o fim de tudo. Não creio num paraíso, inferno, purgatório ou
reencarnação. E fiz minha escolha; quero o fim neste instante. Mas quero que
seja em paz. Já me distanciei o suficiente para fazer falta não mais que dois
ou três dias. As pessoas ali embaixo não sabem disso, pensam que estou aqui
porque devo ter perdido o emprego, briguei com a esposa, estou endividado,
deprimido ou coisas do tipo. Os clichês do suicídio: creio que não me encaixo
em nenhum deles. Penso simplesmente que há vazio e falta de sentido demais na
vida e na humanidade. E essa falta de intensidade sempre me fez muito mal;
somos sempre muito intensos em relação ao dinheiro, ao sexo, à paixão, ao
trabalho, etc., mas esquecemos dos gatos em nossas varandas, do céu acima de
nós, da mangueira sexagenária em uma rua qualquer de um bairro pacato. Talvez
essa condição blasé seja própria do
ser humano, mas nunca deixou de me incomodar. Assim sendo, simplesmente
gostaria de não mais me incomodar, mas sim respirar o ar diferente daqui de
cima por uns instantes, aproveitar a visão única, sentir a sensação única do
vento sobre o rosto em queda livre e desligar. Eu me conformei com isso; por
que o povo ali de baixo não?
Um
carro dos bombeiros chega, uma equipe sobe até o telhado e tenta o primeiro
contato. Não gostaria de sentir que minha morte será um estorvo, um desastre
televisivo, nem que ninguém reflita sobre isso. Acho que escolhi o pior lugar e
hora para isso. Esse ponto final já estava cheio de conflitos não
resolvidos com a sociedade.
-
Estamos aqui para ajudar, senhor. Por favor, fique calmo –, me disse um deles.
-
Sim, vocês fazem um ótimo trabalho. Admiro o que fazem pela sociedade e ficarei calmo, como me pediu -,
respondi, cordialmente.
-
Então me ajude neste também. Normalmente, devo ser chamado pelo meu
sobrenome, Paiva. Mas você pode me chamar de Roberto, meu primeiro nome. Qual o
seu? – ele perguntou, tomando todas as precauções para que eu não me agitasse e
caísse por acidente. Admiráveis esses bombeiros; realmente querem salvar vidas.
-
Meu nome não é importante. E você tem o nome do meu pai. Pode me chamar assim
também.
-
Por que não quer ser chamado pelo seu nome? Você é um indivíduo, senhor. E é
muito importante para a sociedade, para sua família e amigos. -, me decepcionei
um pouco com o clichê mas dirigi-lhe um sorriso amigável.
-
Porque eu vou sair daqui da beira e irei junto com você, Roberto. Mas vou
deixar de viver em breve, e não gostaria que você me identificasse depois. Vou tomar
o cuidado de fazer isto longe da sua base, assim você sequer irá recolher
meu corpo. É uma questão que já está decidida, mas quero fazer de forma
discreta, e esse alarde todo me fez perder a vontade. Caso saia no jornal
quando eu fizer novamente, você não saberá que sou eu.
Percebi
a confusão no olhar de Roberto, o que é absolutamente normal. Uma calma dessa
para um suicida provavelmente é a mesma de um psicopata, e os bombeiros não
lidam com esse tipo de gente. Creio que seja mais fácil sentir-se satisfeito em
salvar alguém que se debata em desespero do que alguém convencido somente pela
presença dele ali. Espero que ele passe a acreditar que salvou uma vida e não
me reconheça depois, quando eu for mais eficaz em meu ponto final.
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