Não
são poucos os que dizem que todo bom escritor é melancólico, solitário, bem
como toda boa obra literária é densa, triste, carregada dos piores sentimentos
humanos. Ao lermos a maldade é que enxergamos o bem. O debate é longo, diz
respeito aos objetivos da arte para a humanidade (isso se houver algum) e não
penso em tratá-lo aqui. Quero falar de minha manhã.
Fui
despertado por uma brisa leve que atingiu minhas persianas e chegou ao meu rosto,
denunciando a aurora, seguida, em poucos minutos, de uma luz solar amarelada que
repousou sobre os telhados vizinhos. Me levantei e vi meu pequeno siamês
enrolado, embaixo de seu cobertorzinho, perceber o movimento de meus passos,
abrir seus pequeninos olhos azuis, certificar que está tudo bem e voltar a esconder-se
da luz do dia em suas pequenas patas. Fui à varanda e vi um casal de idosos
caminhar suavemente na rua deserta, onde não se ouve mais do que os ecos de uma
cidade que ainda despertava. Estão se exercitando e andam de mãos dadas; não
trocam palavras entre si, mas sincronizam seus passos de forma incrível. “As palavras também são desnecessárias, como
o provam os mudos de nascença“, já disse Campos de Carvalho. Finalmente o
compreendi.
Faço
um chocolate quente, ligo a TV e me sinto um transgressor de minha idade, sorrindo
ao assistir o Tom executando a Rapsódia Húngara de Liszt, enquanto Jerry
sabota-o de todas as formas. Torço sempre pelos gatos, seja qual for a ocasião.
Meu pequeno siamês incomoda-se com o volume e a claridade tão próxima e vem ao
sofá, em minha direção. Aproveita-se de minha calça de moletom ainda quente
para aconchegar-se e cair no sono, enquanto acaricio-o e ouço seu ronronar
escandaloso. Dorme com tremenda felicidade e me faz sorrir, desejando a
eternidade para aquele momento.
Dirigi-me
ao quarto de meu filho, que completou 1 ano há duas semanas, numa festa que
foi mais para os convidados que para ele. Jurei a mim mesmo dedicar todas as
outras cerimônias para quem realmente é importante. Mas isso deve ser normal
para quem é pai de primeira viagem, e ele sorriu por alguns momentos, o que fez
a comemoração valer a pena, afinal. Em seu bercinho, ele dorme profundamente ao
som dos pequenos sinos sobre seu berço, movimentados pela leve brisa da manhã.
Vejo o centro da razão de minha existência e da vida como um todo naquele
estufar e esvaziar de sua pequena pança. Meu pequeno siamês adentra o quarto e
mia para mim, desesperado em pensar que o troquei pelo bebê. Eles vão se
entender um dia. Por ora, somente eu desfruto ao máximo o prazer da companhia
de cada um, me tornando mais feliz todas as manhãs de minha vida. Especialmente
essa.
Apesar
disso, precisei despedir-me de ambos e partir pelo resto do dia. Hoje, mamãe
morreu.
Mais um lindo texto deste jovem que faz "poesia" em prosa...Imagens e sentimentos de tanta doçura ás vezes melancólica e outras vezes apenas a fugaz plenitude existencial do personagem. Tão Bonito...Parabéns Raul...É sempre muito prazeroso ler suas cronicas, seus ensaios, enfim...
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