domingo, 29 de janeiro de 2012

Roda gigante


Toda vez que vejo esta roda gigante, me lembro da ferrugem de suas grades que me tornou o homem mais feliz do mundo naquela fria noite de inverno de 63. Ou 64, não me lembro; os invernos foram todos gelados no começo daquela década. Mamãe dizia até que nunca tinha ficado tão frio, o que é exatamente a mesma coisa que repito todo ano. Não sei se realmente está ficando mais frio ou se estou mais sensível, tal como minha mãe.

Como eu ansiava pegar a mão de Maria! Jamais tomei qualquer iniciativa a respeito pois o medo de ser grosseiro era ainda maior. Aquela mão parecia tão pequenina e sensível ao olhar que eu tinha medo de machucá-la com o mais leve toque. Por isso eu desejava tanto que ela decidisse encaixar sua mão na minha e recorria aos subterfúgios mais patéticos, a maioria deles sem sucesso. Antes da roda gigante, a última tentativa foi atravessar a rua na parte onde estava mais encharcada, e estendi minha mão para ajudá-la a pular. Ela, sempre muito esperta e difícil, pegou-me pelo antebraço e me arrastou para o lugar onde poderíamos atravessar confortavelmente.

A roda gigante, porém, parecia infalível: eu sempre tive medo de altura, e essa era a oportunidade perfeita para torná-lo maior que meu receio e me fazer pegar em sua mão. Convidei-a na terça para ir ao parque no sábado e me preparei para encarar o medo nos dias restantes, sofrendo, inclusive, de uma insônia crônica causada pela troca de lugar na beliche com meu irmão, que deixou claro que nunca mais devolveria a parte de baixo. Quando se é jovem e impulsivo, aceita-se qualquer coisa sem pensar num futuro que não seja o, no máximo, da próxima semana.

Nada disso importava, contanto que eu fosse capaz de controlar meu medo e não apertar muito forte sua mãozinha. E o dia gélido de sábado convergia ainda mais com meu plano; seria não só uma forma de vencer meu medo, como também de aquecermos nossos corpos um no outro. Só não estava nos meus planos ela surgir de sobretudo de couro e aquela grossa luva de lã branca.

Como qualquer parque que vai às cidadezinhas sazonalmente, o que veio ficou na praça da Igreja onde nos casamos 6 anos depois, quando finalmente me sentia à vontade de expressar meu grande amor e pegar na mão de Maria em público. Eu era, definitivamente, um homem de medos. E muitos eu perdi por ela.

Lá estavam a barraca de maçã do amor, a pescaria, as argolas, a boca do palhaço, o tiro ao pato, o carrossel, o mágico, o algodão-doce, os balões...tudo no caminho da imponente roda gigante. Era o primeiro ano que vinha à nossa cidade e era motivo de grande adoração por todos. Alguns diziam que do topo era possível até ver o mar, desconhecido para a maioria de nós. Mas, como podiam ver o mar de noite? “Ele reflete a luz da lua e conseguimos ver a onda gigante acabar com o reflexo”. Depois soubemos ser uma daquelas fantásticas histórias inventadas por uma criança replicada por adultos desejosos por fantasias do tipo.

A fila era imensa e o ranger de cada engrenagem daquela imensa roda serviu para aumentar o nosso medo a cada volta. 7 voltas que ela deu até chegar a nossa vez, quando o medo se converteu em nervosismo. Não sabia se teria coragem de pôr em prática meu plano, que a cada minuto parecia mais estúpido. Mas lá estávamos e não podíamos simplesmente ir embora de repente. Escolhi apertar com força minhas próprias mãos, caso eu sentisse medo. A roda girou e uma brisa gelada subiu pela minha nuca e por um instante esqueci a presença de Maria. Fechei os olhos. “Veja, que lindo aqui de cima!”, ela me disse e eu não consegui responder, muito menos abrir meus olhos. Senti a roda descer.

“Você está bem, Heitor?”, ela me perguntou, com a mão sobre meus ombros. Esta pergunta me soou distante, pois eu só conseguia ouvir o ranger das engrenagens e me arrepiar por inteiro com a brisa que se intensificava quanto mais a roda subia. “Segure nas barras, você vai se sentir mais seguro”, o que fiz e me fez ficar com as mãos ainda mais geladas; nada bom para alguém tão assustado. Coloquei-as no bolso e me encolhi. Senti a intensificação da brisa por mais 4 vezes e finalmente a enorme engrenagem parou. Lá estávamos nós, em solo firme, prontos para ir embora e eu me despedir para sempre de Maria. A portinhola se abriu, desci primeiro e aguardei.

“Ora, mas veja isso! Minhas luvas estão todas sujas de ferrugem!”, exclamou Maria ao retirar as mãos das barras. Imediatamente as descalçou, guardou na bolsa e se preparou para descer. “Me ajuda?”, ela perguntou e estendeu-me a mão. Olhei em seus olhos e percebi que ela sorria para mim, não pela minha covardia, mas pela pureza na qual eu me representava através de meu medo. Não caçoava de mim, e sim tomava a iniciativa que eu jamais tomaria. 

O plano, afinal, funcionou: eu aquecia minhas mãos nas de Maria. Só faltou ver o mar.

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