quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Cabeceira, vida e humanidade.

  • Indicação: Ler o post abaixo abrindo, simultaneamente, os dois links, reduzindo um pouco o volume da música no Youtube.
         RainyMood
         Chippie Hill - Around The Clock Blues

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         No interior de seu quarto, quase sempre o seu mundo, ele vê e ouve a chuva escorrer em sua janela, caindo contra a luz artificial noturna e sobre poças d’água em seu quintal, criando pequenas ondas, uma após a outra. Não é forte além do suficiente para despertar a atenção e a tristeza. 

O cômodo não emana nenhum som, exceto o do blues em volume mínimo, onde não se ouve mais do que fragmentos de piano, trompete e um vocal feminino rasgado e melancólico; a percussão ritmada da bateria fora negligenciada, graças à fraqueza do som emitido pelos pequenos alto falantes acoplados ao tocador portátil, capaz de carregar a musicalidade – geniosa ou vulgar - de todo o mundo, distorcendo e retorcendo-a aos seus bel-prazeres. A luz do abajur é a única a iluminar o ambiente por dentro, produzindo sombras desproporcionais às habituais: a pequena garrafa de cerveja sobre o criado-muro obscurece quase todo o oeste, sobrando ao leste, de baixo a cima, as sombras da feição e a fumaça do cigarro, que, combinada aos devaneios de sua psique, transforma todo o ambiente numa nebulosa estelar. Ele sabe, contudo, que ali não nascerá nenhuma estrela. Recosta sua cabeça na parede, olhando à sua esquerda, para a janela.

Prontamente se reconheceu numa fotografia, numa cena de filme, em que o personagem pode tanto lançar um furtivo olhar amoroso em direção ao infinito, quanto tal infinitude pode receber olhos depressivos, pensativos; ele não pode se encaixar na primeira opção há tempos. “Há quanto tempo meu coração não arde?”, pensava, enquanto bebia de sua cerveja já quente, retomando todo o seu passado, incluindo os tempos onde pensou ter havido uma chama em seu coração, que depois veio a entender que não era nada além da mera reação a sentimentos alheios; “amei porque fui amado”. São olhos depressivos, que enxergaram o absurdo da vida, mas não querem dar nenhum salto, seja de fé ou de um penhasco. Na procura de um sentido para a sua existência e a de seus pares, a janela e a chuva tornam-se musas: “se podemos extrair algo sobre a humanidade, é essa a visão que tornará isso possível”.

Refletiu muito, fez uma viagem aos primórdios de nossa raça, lembrou parcamente dos estudos antropológicos, da época em que acreditou no homem como uma multiplicidade, composto de comunidades inteiras que se diferenciavam entre si, o que tornava a expressão “ser humano” uma falácia, já que somos e fomos muitos; revisitou a Grécia antiga, e teve seu raciocínio disperso na mitologia: da acrópole e as noções de democracia, foi aos mitos de Eros e Psique, de Orfeu e Eurídice, Sísifo, Ícaro, Teseu e o minotauro, Belerofonte, Ulisses. Mitos grandiosos, que o faziam acreditar no homem como o único ser capaz de fantásticos feitos, de sentimentos difusos e puros, de enfrentar o que está além do alcance, se reinventar. O que o resignou, porém, foi saber que tais ensinamentos possuem a mesma fragilidade da vida; repentinamente, tudo o que se construiu e se consolidou ao longo dos séculos pode erodir em questão de anos. (Uma vez esquecido, deixa de existir.) Ainda recostado à cabeceira de sua cama, de pernas esticadas e cruzadas, atravessou a noite olhando, de olhos semicerrados, para a, agora forte, chuva lá fora.


         Nota do autorEste é um texto que escrevi há cerca de 6 meses, e faz parte de um compêndio que intitulei Tratado da chuva na janela. A intenção é retratar os mais diversos sentimentos e/ou ações possíveis e como elas se potencializam diante da visão de uma chuva que cai na janela. É um texto que dedico atenção especial há um tempo, dado que esta visão é a que mais me inspira a criar; não à toa é o nome que resolvi dar a este espaço. Espero que tenham gostado, aguardo comentários.


3 comentários:

  1. Ah... A chuva que tenho em minhas janelas agora tem outro som pela leitura da sentimentalidade humana refeita em palavras... Porque cada gota refaz um espaço de mim, uma parte de mim, construção do que sou, do que fui e de algo que talvez eu venha a ser... Desejo-te olhos nem sempre abertos, mas alma sempre desperta para enxergar o que está para além da janela, entre os pingos de chuvas...

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  2. Raul, mais um lindo texto :) E muito legal o lance de colocar o link do youtube, juntamente com o barulho da chuva na janela.

    A chuva tb me inspira e não foram poucas vezes que eu fiquei divagando deste jeito, ao observar a chuva caindo pela janela.

    parabens pelo texto.
    Abração

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  3. Raul... Que belo texto...A visão da chuva na janela ou ouvir o barulho da chuva me dá(não sei por que) uma sensação de segurança, de que está tudo bem, mas este texto me transportou para infinitas possibilidades de pensar e sentir...Parabéns Raul...

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