sábado, 10 de setembro de 2011

Crônica de uma madrugada - Parte III

- Sim, acho que eu também a amo, – respondeu Rodolfo, ingenuamente – mas não é isso o que eu disse. Disse que...


- Que alguém se declarou para mim na descarga do banheiro, eu entendi da primeira vez. – ela interrompeu – E minha resposta se mantém. – completou.

A dança acaba com a música, a embriaguez diminui, Letícia permanece apaixonante e Rodolfo está confuso. Ele poderia amá-la, mas teria escrito aquela mensagem? Parecia-lhe plausível: já ouvira falar de tipos de amnésia em que o indivíduo leva a vida normalmente, sem grandes questionamentos; afinal, todos esquecem a maior parte da vida e ninguém se questiona tanto a respeito dela - embora talvez devêssemos fazê-lo. A diferença desse esquecimento era somente ser involuntário.

Sentam-se à mesa, ela pede mais uma garrafa de vinho e eles bebem enquanto Rodolfo questiona a ela e a si mesmo sobre a veracidade do que acabara de ouvir. Letícia adota postura evasiva e diz, laconicamente, que ele já a amara antes e que, no ápice do romance, a pediu em casamento. Ele resignou-se por não se lembrar disso, embora enxergasse a oportunidade de uma nova tentativa nesta direção, pois estava, novamente, apaixonado a ponto de ver-se com ela em uma vida a dois. Por curiosidade, Rodolfo pergunta se ela aceitou o pedido e se vê surpreendido com a descoberta de que ela respondeu precisar pensar a respeito. Pareceu-lhe razoável uma reflexão para contrair matrimônio com alguém que se declarou num banheiro público.

À medida que ele questionava-a na tentativa de recuperar sua memória e detalhes sobre a relação que tiveram na pia ela impacientava-se. Seus copos se esvaziavam em uma velocidade alucinante, a ponto de ela beber direto da garrafa quando questionada se ainda tinha aquele mesmo vestido de que ele lembrou em rápidos flashes. Nenhuma palavra, mas um sorriso constrangido foi o que Letícia lhe direcionou e clamou por mais uma garrafa de vinho. A tontura abatera a ambos neste extraordinário ritmo de bebedeira; obviamente, também esta cena não era uma novidade para Rodolfo, que se entregou a um sorriso e sono bucólicos, enquanto ela dirigiu-se ao banheiro para regurgitar tudo o que engolira de forma alucinada nos últimos minutos.

O mundo de Rodolfo girava de forma psicodélica, ritmado por I Want You (She’s So Heavy) - título que lhe pareceu oportuno -, que ecoava pelos falantes da Jukebox. Atravessa Abbey Road e esbarra em George, pois precisou correr para fugir do Fusca branco que vinha de ré, quase o atingindo na calçada. Desculpa-se e é logo afagado pela cordialidade britânica de costume. Anoitece e ele segue caminhando até o cruzamento, onde o tráfego intenso o impede de atravessar a rua (para, quem sabe, esbarrar em Jim na outra ponta). Cansado de permanecer imóvel enquanto carros passavam, entra no pub da esquina, e em seu interior uma fanática torcida vestindo azul torce fervorosamente em um coro ensurdecedor, emudecido somente pelo cantarolar de uma moça sentada ao balcão de costas para o rapaz, usando chapéu e vestido que desnuda os ombros. Ao terminar em sua doce cantoria, o escândalo dos fanáticos volta a ressoar no ambiente, enquanto a moça se perde na multidão. Subitamente, durante um gol da equipe de azul, o ambiente é tomado pela escuridão, e uma luz branca pisca num cubículo à frente de Rodolfo, que vai até ele. 

Uma caixa de descarga com os dizeres “Letícia I Love you”, uma parede com porcelanas quebradas, uma foto de Paul McCartney colada ao teto, um espelho embaçado, a luz instável que apaga e, ao acender, traz consigo a moça de chapéu, vestido e meia-calça. Exala o mesmo perfume de porre de vinho e deixa à mostra uma boca usando batom avermelhado que clama por seu beijo, prontamente atendido. Com sua mão direita, Rodolfo ergue o vestido da mulher, sentindo a poliamida em seus dedos, enquanto ouve um pequeno riso e gemidos em forma sussurro em seu ouvido, seguido de uma voz aguda que lhe diz:

- Olhe para aquela inscrição e sinta meu interior –, sorri e morde levemente sua orelha.

Continuaram no entrelace de seus corpos até o chapéu ir ao chão e um comprido cabelo louro alcançar os quadris onde pousavam as mãos de Rodolfo. Atordoado, volta seus olhos ao rosto da moça, enxergando a mesma boca, agora manchada de batom e cintilantes olhos azuis, que lhe sorriem e dizem:

- Vou te mostrar porque não pode amá-la mais que a mim.

As mãos de Magrão sacodem o ombro do rapaz, que desperta transtornado e olha ao redor à procura de Letícia. O bar está completamente vazio e a porta do banheiro aberta; por fim, vê o relógio e indigna-se:

- Merda, dormi tudo isso?!

(Continua)

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