domingo, 4 de setembro de 2011

Crônica de uma madrugada - Parte II

- Deixe que eu pago, Magrão. -, intervém a moça de cabelos negros e encaracolados, calça e jaqueta jeans, sentada de pernas cruzadas junto ao balcão; por baixo, uma camiseta branca estampando um muro.

- Vai pagar também pelo copo, então. E trate de levá-lo embora, Letícia. – disse Magrão, jogando a toalha sobre seu ombro e fitando-a, contrariado.

O rapaz volta seus olhos para a moça, consternado. Estava tonto demais para ter certeza se era realmente linda; naquele instante, era apaixonante. Ela sorri, fazendo com que seus dentes brilhem sob a luz púrpura do bar, escurecendo seu rosto, deixando à mostra somente o brilho de seu sorriso e de seus grandes olhos negros. Leva o canudo de seu mojito à boca e mantém os olhos em Rodolfo, que se mantém imóvel, hipnotizado por aquele olhar escondido em cachos que o intimidavam como nunca; sentia-se nu, dominado e com medo. Mas esse sentimento também lhe parecia familiar. Ela anda, mancando na perna direita, em direção à sua mesa, puxa uma cadeira e se senta.

- Me desculpe, sei que é falta de educação sentar em sua mesa sem pedir licença. Mas encare como uma recompensa por ter livrado sua cara. – e tomou mais um gole.

Rodolfo pensou em agradecê-la. Ao abrir a boca, contudo, emudeceu-se, e lembrou-se do velho orgulho misógino impregnado nos homens de quase todos os tempos:

- Não preciso que livrem minha cara. Mesmo assim, obrigado por me fazer beber este vinho sem me sentir culpado pelo digníssimo dono deste lugar. – e bebeu um gole, que encerra o argumento de cada um nesse diálogo inicial.

Ela olha-o de forma condescendente, com um leve sorriso; ele desfaz-se diante de tal expressão, ao mesmo tempo em que reflete sobre a benevolente natureza feminina: acabara de conhecer (ao menos, é o que sua lembrança imediata lhe diz) aquela mulher que lhe pagou uma garrafa de vinho, livrou-o de uma bela surra, ouvira sua grosseria e agradecimento irônico e ainda lhe dirigia um belo e puro sorriso. Sentia-se constrangido, e ela sorriu ainda mais.

Ela bebe mais um gole, puxa-o pela mão, deixa-o na pequena pista em frente a Jukebox e pede para esperá-la, enquanto vai até a máquina escolher uma música. Ele a vê apoiada sobre a máquina que ilumina sua feição, seu rosto rosado e olhar ansioso, como o de uma criança em frente a uma máquina de doces ou de brinquedos; seus longos cachos caídos sobre sua jaqueta embelezam ainda mais aquela misteriosa mulher. Restava ter bom gosto, mas sua vestimenta a credenciava a tal, principalmente sua camiseta de muro. O sorriso demonstra que a música fora escolhida e ela retorna à pista, correndo em passos curtos.

- Veja se o que você verá agora não é familiar. – completa, antes que a música comece a tocar.

Learning to fly  explode dos altos falantes e ecoa nos ouvidos de Rodolfo; a moça ergue os braços em posição de Cristo – com o mojito em sua mão direita -, deixa a cabeça cair para trás, fecha os olhos e sorri como se recebesse uma chuva torrencial em um dia quente. Seu corpo balança e rodopia com a melodia e suas mãos viajam por seus cabelos e curvas, e seus olhos procuram os do pobre rapaz bêbado e hipnotizado que a olhava naquela pista, enquanto o resto do bar os ignora. Num último e grande gole, finaliza seu coquetel, avança à mesa logo atrás de Rodolfo, que permanece imóvel; ela curva levemente seu corpo sobre o dele, alcança a mesa com seu braço ao lado do dele, larga o copo e aproveita o movimento para pousar os braços no pescoço de Rodolfo, que sorri, leva suas mãos à cintura da moça e percebe-se deslumbrado não só por ela, como também pela familiaridade da cena. Ela apenas olha-o e sorri.

- Seu nome é mesmo Letícia?

- Sim, o Magrão não é de esquecer nomes, principalmente dos que vem aqui há bastante tempo.

Rodolfo volta seus olhos para o balcão e percebe que Magrão os observa, sem a cólera de instantes atrás. Tudo convergir para a felicidade não era algo do qual Rodolfo estava acostumado, e isso o perturbou por um instante; seus olhos voltaram para os de Letícia, e ele tentou buscar sua alma através dessa janela; imagens difusas, ininteligíveis, vieram à sua mente. Traziam, entretanto, imensa paz de espírito. Ele então colou seu corpo junto ao dela;  ela cerrou seus olhos, deixou-se conduzir pelo rapaz que não perdeu a oportunidade e a beijou. De olhos fechados durante o beijo, viu-se com ela em tantas outras situações que julgou amá-la de imediato; o hálito, o modo como a língua dela encontrava com a dele, os corpos encaixados, a viagem sonora que rompia com qualquer racionalidade possível e o fervilhar de sangue em todas as partes do corpo fizeram-no entender a inscrição no banheiro. Ao término do beijo, sorriu e disse:

- Letícia, uma pessoa veio até aqui e fez uma lamentável declaração para você na caixa de descarga do banheiro. Mas posso dizer que entendo porque ela a ama.

- Claro que entende: é você quem me ama. – disse ela, laconicamente.

(Continua)

3 comentários:

  1. Raul que texto bom!!!!Dá vontade de continuar lendo e uma nostalgia quando ele acaba rsrs... Belas e ricas imagens ou seja metaforas tão sutis e liricas e leves...Muito bom tanto esta parte do texto quanto a parte 1...Parabéns Raul!!!

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  2. Não há sensibilidade que não se curve diante da improvável caminhada a que os fatos se desenrolam... Como sempre entre a docilidade das palavras e as máscaras humanas... Muito bom...

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  3. Mais um grande texto! Valeu, Raul!
    Um abraço.
    Alberto

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